27 de junho de 2016

o que a confiança exclui, continua a crescer como uma hera, constante e harmonioso, até que, livre de juízos e de um dia para o outro, desaparece, dando lugar ao que ocultava.
saio agora para os jardins
para que aquilo que é
se faça sob a luz.
O mais valioso nos versos e na vida é aquilo que chegou involuntariamente.

Marina Tsvetaeva [Марина Цветaева], Indícios terrestres.

24 de junho de 2016

o que admiramos nos loucos é a perfeição das suas solidões.
mal o disse, bateu nas coxas, no entanto com uma eficácia duvidosa, resultado de uma dieta de emagrecimento. face a face, lúcidos como um diabo, observavam a mutação daquilo que não sabiam e nenhuma explicação parecia suficiente. eram agora reféns do momento. qualquer palavra teria sido alvo de cinismo e, por isso, o silêncio prevaleceu, ainda que nele houvesse um efeito surpresa: viram-se envelhecer com uma indecência indigna, de repente.

23 de junho de 2016

R. tem os nós dos dedos salientes,
mais salientes que os das amigas
com quem se encontra
por vezes
embora no geral
sinta que está cercada de bobos
e se admira de viver
em tamanho perigo
e por isso ri
e se espanta.

22 de junho de 2016

os gatos sentados no parapeito das janelas

não havia um único
que não estivesse preparado
para o primeiro momento.
fico imóvel, como um animal alegre, à entrada do frigorífico, porque a matéria adere à matéria, e me vejo na abertura branca, sem mim, não como uma ausência mas sim como um milagre, sem felicidade ou infelicidade, como um dom, ou um delírio, por exemplo, através do qual seria possível escorregar se os olhos não ficassem aterrados com o vácuo.

20 de junho de 2016

na gaita
do amolador
soa um adágio
que marca a hora
leda, branda, equíssima
do meu encontro com a terra
tudo o resto 
que sob a pele
sob os nervos
pensa e pressente
é o tédio incerto
seco e mudo
onde intrigas insones
e heresias ledas
são fermentadas
com muita fleuma 
que por um triz
não greta
entre as calúnias
num ou noutro pormenor
acerta-se no limiar

se um corpo pressupõe
um peso
e este um jogo

qualquer sinal
independentemente dos sinais
se torna brandura

se a matéria se afasta
a luz é fatal
originária, nuclear.
acossada por nunca ter entrado nas perguntas
a constância chegou
numa palavra estrangeira
impronunciável
que ninguém aceita

é intolerável cantar alto
entre o sopro monótono das imagens
como uma montanha inacessível
e transparente
dissipo-me

a quem atribuir a culpa
do pudor e do escrúpulo
se nada há de mais arguto

animal acossado numa força
que irradia do que já não vive
vigio o jogo impassível da ordem
esta semelhança esculpida
na substância
massiva
da beleza feminina
promete a realização
de elevada
fantasia
material de pureza
se quiserem
ligeiramente desconfortável
como uma série
de acontecimentos
ligados
pela improbabilidade
e ainda assim
inflamáveis
como um génio
ingénuo
enfim
uma banalidade
o último dinossauro
a invenção do fogo
a divisão do átomo
uma paródia
hilariante
como uma ferida
a água
funda e sossegada

19 de junho de 2016

nunca senti nada pelos manicómios senão um grande conforto, por serem lugares onde podemos dormir o dia inteiro.
S. é uma rapariga qualquer, de calças de ganga e t-shirt comprada na H&M, com a cara cheia de sardas. F. observa o seu longo cabelo preto e os dois mantêm-se em silêncio porque entre eles não há nada para dizer, a sua presença basta. A campainha soa e alguns convivas saem para o jardim com o copo na mão, lançando-lhes um olhar cúmplice. S. não se mexe, não desvia o olhar, não sorri, não finge ocupar-se com nenhuma ação. Sob aquele sol seco e esplendoroso, a luz transmite uma profunda paz e, no meio de toda aquela gente que pergunta por quem está à porta, cujas vozes ecoam surdas dentro do calor como se fossem inventadas, F. sente-se desmaiar. A sua atenção, no entanto, não se desvia dela. desesperado como um miúdo, cada gesto pesa dentro daquele universo com certa religiosidade, como se estivessem nus, e não serve para mais nada senão para tornar o momento ainda mais mudo. F. descobre-se como um silencioso escravo. Seria capaz de cometer um crime, pensa. exatamente nesse momento, S. olha para F. pela primeira vez. com igual surpresa — e grande angústia —, o crepúsculo ameaça cair: um galo canta, a sirene da fábrica soa ao longe, a luz cerca-se de uma sombra ténue mas profunda. contraditório, o ar austero de S. é impossível de ignorar e, enquanto a campainha soa várias vezes, F. tem a sensação da alegria cessar completamente. enquanto lá em baixo o portão se abre, S. mergulha na piscina e, obedecendo ao seu instinto, F. mergulha também. por fim, depois de nadarem umas braçadas, numa voz breve, tem a coragem de falar.
— É engraçado. Mal entro na piscina dá-me vontade de urinar. — S. tem a cabeça baixa e uma expressão estranha nos olhos. F. prossegue: — Achas muito mal que faça aqui?
— Não acho que faça bem.
— Talvez seja assim que me queiras ver. Como um parvo ou um desastrado.
— O que é que quer dizer com isso? — S., que não pode esconder um leve sorriso, está inquietada mas continua: — Não tenho nada a ver com o que você faz.
F. mergulha a cabeça, nada em direção à escada e sai da piscina. — Até já. — diz-lhe, deixando-a a flutuar à deriva. já de costas voltadas e alguns passos adiante, ouve-a responder: — Há sempre a possibilidade de reter água na boca.
F. torna a voltar o corpo para a piscina e conforta-a.
— Podes sair por outra escada.
S. guarda silêncio. F. continua:
— Amanhã saímos cedo, para um passeio. Não se aproveita melhor um dia no campo como a passear.
Saindo da piscina pela mesma escada, S. responde:
— Somos personagens de uma fábula.
— Quem irá burlar quem?