3 de junho de 2016

Avanço debaixo do sol tórrido avenida abaixo. Não tinha nome esta rua e continuo sem saber o nome que lhe deram. De um lado, o hipermercado e, mais à frente, do mesmo lado, as casas novas e a escola onde andei. Do outro lado, o jardim de infância e, mais à frente, do mesmo lado, cafés e casas novas. Tudo isto foi construído após a minha partida. Se comparar os dois tempos, antes e após, passado e contemporâneo, antigo e novo, tudo está diferente. Onde agora existem lojas, prédios, escolas, um hospital e muitos carros, não havia nada senão oliveiras e erva. A avenida, feita de pó, não tinha sombras e custava atravessar, no verão por causa do sol em brasa, no inverno por causa da lama. Volto a atravessá-la com o mesmo sentimento de outrora. Esta terra, com as suas oliveiras e a serra a dominar a paisagem atrás das casas, ter-me-ia afundado na loucura. Os 18 anos que aqui vivi estiveram imersos num claro «tenho de sair daqui» e, ainda hoje, corto cuidadosamente as amarras que me ligam a este lugar. Quando venho, saio pouco de casa, para evitar o contacto com as pessoas. O lodo. Nada era possível e nada teria sido possível. Um tremendo sufoco, angústia, fechamento e solidão impregnavam os meus dias. Isso e um estranho sentimento de nojo perante os meus conterrâneos, apesar do qual, na maioria das vezes, evitava chocar sensibilidades. Era daí que provinha o mais terrível esforço, de ter de me esconder. Levei anos a subtrair-me ao silêncio conspirativo que me devorava e a descobrir que nem tudo é solidão e adversidade. Farejei com desespero esses bandos, procurando um lugar neles mas nunca compreendi as pessoas cuja existência não ressoa como um equívoco. Assim que surgiu a oportunidade, corri para o mais longe possível. Que me esquecessem, era o meu desejo, habitando casas que sempre me foram estranhas. Daí que, aprendi cedo, o amor é uma força cega que não traz necessariamente bem estar e conforto. Há amores cuja intensidade nos isola, que funcionam como um escudo entre nós e o mundo, perigosa e tragicamente, entre nós e nós próprios. Mas até no chão da batalha a vida se intromete, incólume.

2 de junho de 2016

o amor faz parte da engrenagem do mundo tal como a chuva e o vento. e exatamente nessa proporção.
Isto é... Bom, o que pode existir além disso? Ter uma pequena infância comum, uma infância comum cheia de paixão. Nada. Nada, absolutamente nada pode existir para além disso.

*

Já o disse em Hiroshima Mon Amour: o que conta não é a manifestação do desejo, da tentativa amorosa. O que conta é o inferno da história única. Nada a substitui, nem uma segunda história. Nem a mentira. Nada. Quanto mais a provocamos, mais ela foge. Amar é amar alguém. Não há um múltiplo da vida que possa ser vivido. Todas as primeiras histórias de amor se quebram e depois é essa história que transportamos para as outras histórias. Quando se viveu um amor com alguém, fica-se marcado para sempre e depois transporta-se essa história de pessoa a pessoa. Nunca nos separamos dele. Não podemos evitar a unicidade, a fidelidade, como se fôssemos, só nós, o nosso próprio cosmo.

Marguerite Duras

1 de junho de 2016

Emily Dickinson

31 de maio de 2016

Que rudimentares são as nossas emoções.
It has made me better, loving you.

Henry James, The Portrait of a Lady.

30 de maio de 2016

Eu, naquele inverno, estava tomado de furores abstratos. Não direi quais, não é isso que me proponho a contar. Mas é preciso dizer que eram abstratos, nada heróicos, nem vivos; de qualquer maneira, furores pelo gênero humano perdido. Vinha assim há muito tempo, e andava cabisbaixo. Via manchetes nos jornais sensacionalistas e abaixava a cabeça; estava com os amigos, uma hora, duas horas, e ficava com eles sem abrir a boca; abaixava a cabeça; e tinha uma moça ou uma mulher que me esperava, mas nem com ela eu trocava uma palavra, mesmo com ela eu abaixava a cabeça. Chovia o tempo todo, passavam-se os dias, os meses, e eu tinha os sapatos furados, a água me entrando nos sapatos, e não era mais nada que isso: chuva, carnificinas nas manchetes dos jornais, e água nos meus sapatos furados, amigos mudos, a vida em mim como um sonho surdo, e não-esperança, calmaria.
Isso era terrível: a calmaria na não-esperança. Dar o gênero humano como perdido e não ter vontade de fazer coisa alguma quanto a isso, nem vontade de me perder, por exemplo, com ele. Eu estava perturbado por furores abstratos, não no sangue, e ficava quieto, sem vontade de nada.


Elio Vittorini

29 de maio de 2016

26 de maio de 2016

era um corpo estrangeiro
que incomodava.
eu deveria dizer
«não lhe toquem, deixem-no»
mas todos o tinham deixado.

qualquer coisa o impedia
de perdurar como uma bela memória
da infância
pois era cómico
e implorava viver.

usava palavras
cuja origem garantia
a beleza, a graça e a elegância
como as de uma mãe
no quarto da criança.

mas o som chegava
sempre um pouco mais tarde
como um objeto do outro lado
de um longo fio
atado ao dedo.

as mãos — há que dizê-lo —
as mãos mexiam-se sem propósito
e sem impaciência,
ficando presas nas palavras
como numa teia.

e então, o que poderiam fazer?
a foice sibila
soa um tinir de sinos
alguém canta
labaredas crepitam

por isso o corpo gritou
num tom cavernoso
imerso na sombra
e ergueu-se
muito simplesmente.

25 de maio de 2016

debaixo da árvore
de jacarandá
chove cacimba
Eva caminha
sobre o cimento líquido do Éden.
tem o corpo de uma mulher assassinada.
deita fogo aos juncos 
e esfarela o pão azedo
mesmo sem a energia para o fazer
como qualquer sobrevivente
       — e Eva é
intrinsecamente
uma sobrevivente.
um sentimento indigno
apodera-se dela.
quer dizer alguma coisa
sobre isso
e não consegue.
sem olhar para trás,
mas em cólera,
pensa
«a noite cai depressa»
enquanto arranca uma flor amarela.
cabisbaixo,
Adão caminha uns passos atrás,
vê os juncos queimados
o pão esfarelado
a noite opressora
e a flor amarela no chão,
mas neste momento, Adão e Eva são invisíveis.
a imprudência
não os conduziu ainda
nem ao desespero
nem ao otimismo.
passam sobre o cimento líquido como um zumbido
com certa incredulidade
e abrem a porta.

23 de maio de 2016

Minha arte de magia num mundo sem magia
é a arte da nostalgia original
Perigosa é a canção das sereias
como noutros tempos
Noutros tempos havia mensageiros
reis e loucos
Sonhava-se muito
Eles estavam no incomensurável
e viviam no não ser
O seu nome não se pronunciava
mas o poder deles trazia plenitude às almas
e as pessoas achavam tudo natural


Carlos Edmundo de Ory, in Doze Nós Numa Corda, Poemas mudados para português por Herberto Helder.

20 de maio de 2016

Ele pensava noutras cabeças; e, na sua, pensavam outros que não ele. É isto o verdadeiro pensamento.

Bertolt Brecht

19 de maio de 2016

a idade adulta anda associada à fome, à vagabundagem e à deriva, tal como a infância ao desejo, à devastação inefável e ao silêncio. depois do inferno profundo da inocência o misterioso passado extingue-se e é impossível ancorar.