30 de maio de 2016

Eu, naquele inverno, estava tomado de furores abstratos. Não direi quais, não é isso que me proponho a contar. Mas é preciso dizer que eram abstratos, nada heróicos, nem vivos; de qualquer maneira, furores pelo gênero humano perdido. Vinha assim há muito tempo, e andava cabisbaixo. Via manchetes nos jornais sensacionalistas e abaixava a cabeça; estava com os amigos, uma hora, duas horas, e ficava com eles sem abrir a boca; abaixava a cabeça; e tinha uma moça ou uma mulher que me esperava, mas nem com ela eu trocava uma palavra, mesmo com ela eu abaixava a cabeça. Chovia o tempo todo, passavam-se os dias, os meses, e eu tinha os sapatos furados, a água me entrando nos sapatos, e não era mais nada que isso: chuva, carnificinas nas manchetes dos jornais, e água nos meus sapatos furados, amigos mudos, a vida em mim como um sonho surdo, e não-esperança, calmaria.
Isso era terrível: a calmaria na não-esperança. Dar o gênero humano como perdido e não ter vontade de fazer coisa alguma quanto a isso, nem vontade de me perder, por exemplo, com ele. Eu estava perturbado por furores abstratos, não no sangue, e ficava quieto, sem vontade de nada.


Elio Vittorini

29 de maio de 2016

26 de maio de 2016

era um corpo estrangeiro
que incomodava.
eu deveria dizer
«não lhe toquem, deixem-no»
mas todos o tinham deixado.

qualquer coisa o impedia
de perdurar como uma bela memória
da infância
pois era cómico
e implorava viver.

usava palavras
cuja origem garantia
a beleza, a graça e a elegância
como as de uma mãe
no quarto da criança.

mas o som chegava
sempre um pouco mais tarde
como um objeto do outro lado
de um longo fio
atado ao dedo.

as mãos — há que dizê-lo —
as mãos mexiam-se sem propósito
e sem impaciência,
ficando presas nas palavras
como numa teia.

e então, o que poderiam fazer?
a foice sibila
soa um tinir de sinos
alguém canta
labaredas crepitam

por isso o corpo gritou
num tom cavernoso
imerso na sombra
e ergueu-se
muito simplesmente.

25 de maio de 2016

debaixo da árvore
de jacarandá
chove cacimba
Eva caminha
sobre o cimento líquido do Éden.
tem o corpo de uma mulher assassinada.
deita fogo aos juncos 
e esfarela o pão azedo
mesmo sem a energia para o fazer
como qualquer sobrevivente
       — e Eva é
intrinsecamente
uma sobrevivente.
um sentimento indigno
apodera-se dela.
quer dizer alguma coisa
sobre isso
e não consegue.
sem olhar para trás,
mas em cólera,
pensa
«a noite cai depressa»
enquanto arranca uma flor amarela.
cabisbaixo,
Adão caminha uns passos atrás,
vê os juncos queimados
o pão esfarelado
a noite opressora
e a flor amarela no chão,
mas neste momento, Adão e Eva são invisíveis.
a imprudência
não os conduziu ainda
nem ao desespero
nem ao otimismo.
passam sobre o cimento líquido como um zumbido
com certa incredulidade
e abrem a porta.

23 de maio de 2016

Minha arte de magia num mundo sem magia
é a arte da nostalgia original
Perigosa é a canção das sereias
como noutros tempos
Noutros tempos havia mensageiros
reis e loucos
Sonhava-se muito
Eles estavam no incomensurável
e viviam no não ser
O seu nome não se pronunciava
mas o poder deles trazia plenitude às almas
e as pessoas achavam tudo natural


Carlos Edmundo de Ory, in Doze Nós Numa Corda, Poemas mudados para português por Herberto Helder.

20 de maio de 2016

Ele pensava noutras cabeças; e, na sua, pensavam outros que não ele. É isto o verdadeiro pensamento.

Bertolt Brecht

19 de maio de 2016

a idade adulta anda associada à fome, à vagabundagem e à deriva, tal como a infância ao desejo, à devastação inefável e ao silêncio. depois do inferno profundo da inocência o misterioso passado extingue-se e é impossível ancorar.

18 de maio de 2016

queria saber falar da vida
como um cantor
cuja voz
possuísse a tessitura
de vários naipes
do mais agudo, veloz e brilhante
ao mais grave, extenso e sombrio
Há certa uniformidade monótona nos destinos dos homens. Nossa existência se desenvolve segundo leis antigas e imutáveis, segundo uma cadência própria, uniforme e antiga. Os sonhos nunca se realizam, e assim que os vemos em frangalhos compreendemos subitamente que as alegrias maiores de nossa vida estão fora da realidade. Assim que os vemos em pedaços, nos consumimos de saudade pelo tempo em que ferviam em nós. Nossa sorte transcorre nessa alternância de esperanças e nostalgias.

Natalia Ginzburg (partilhado por Vinícius Nicastro Honesko no Facebook a 18.05.2016).

17 de maio de 2016

Suicide Note:
The calm,
Cool face of the river
Asked me for a kiss.

Langston Hughes
Echo*

A lone
voice

in the
right

empty space
makes

its own
best

company.

Robert West
*(obrigada)

5 de maio de 2016

Microdefinição do autor

(A)
Sinto-me compelido ao trabalho literário: Pelo desejo de suprir lacunas da vida real; pela minha teimosia em rejeitar as “avances” da morte (tolice: como se ela usasse o verbo adiar); pela falta de tempo e de ideogramas chineses; pela minha aversão à tirania — manifesta ou súb­dola —, à guerra, maior ou menor; pelo meu congênito amor à liberdade, que se exprime justamente no trabalho literário; pelo meu não-reconhecimento da fronteira realidade-irrealidade; pelo meu dom de assimilar e fundir elementos díspares; pela certeza de que jamais serei guerrilheiro urbano, muito menos rural, embora gostasse de derrubar uns dez ou quinze governos dos quais omitirei os nomes: receio que outros governos excluí­dos da minha lista negra julguem que os admiro, coisa absurda; porque sou traumatizado pela precipitação diária dos fatos internacionais; por ter visto Nijinski dançar; pelo meu apoio ao ecumenismo, e não somente o religioso; por manejar uma caneta que, desacompanhando minha ideia, não consegue viajar à velocidade de 1.000 quilômetros horários; pelo meu ódio físico-cerebral ao fascismo, ao nazismo e suas ramificações; pela tendência a preferir Aliocha a lvan e Dimitri Karamazov; porque dentro de mim discutem um mineiro, um grego, um hebreu, um indiano, um cristão péssimo, relaxado, um socialista amador; porque não separo Apolo de Dionísio; por haver come­çado no início da adolescência a leitura de Cesário Verde, Racine, Baudelaire; por julgar os textos tão importantes como os testículos; por sofrer diante da enorme confusão do mundo atual, que torna Kafka um satélite da Condessa de Ségur; pela minha tristeza em não poder conversar esquimaus e mongóis; pela notícias de que Deus, diante da burrice e crueldade soltas, demitiu-se do cargo de administrador dos negócios do homem; pelo charme operante das cabeleirosas e das pernilongas, das sexy a jato e das menos sexy a tílburi; pela fúria galopante dos quadros e colagens de Max Ernst; pela decisão de Kasimir Malevich, ao pintar um quadrado branco em campo branco; pela vizinhança através dos séculos, malgrado as sucessivas técni­cas e rupturas estilísticas, de Schönberg e Palestrina; pelo meu amor platônico às matemáticas; pelo dançado destino e as incríveis distrações de Saudade; pelo meu não vertical às propostas ­de determinados apoetas impostas no sentido de liquidação da poesia; pelas minhas remotas e atuais viagens ao cinematógrafo, palavra do tempo da infância; porque temo o dilúvio de excrementos, a bomba atômica, a desagregação das galáxias, a explosão da vesícula divina, o julgamento universal; porque através do lirismo propendo à geometria.

(B)
Pertenço à categoria não muito numerosa dos que se interessam igualmente pelo finito e pelo infinito. Atraem-me a variedade das coisas, a migração das idéias, o giro das imagens, a pluralidade de sentido de qualquer fato, a diversidade dos caracteres e temperamentos, as dissonâncias da história. Sou contemporâneo e partícipe dos tempos rudimentares da matéria — desde 900 biliões de anos? —, do dilúvio, do primeiro monólogo e do primeiro diálogo do homem, do meu nascimento, das minhas sucessivas heresias, da minha morte e mínima ressurreição em Deus ou na faixa da natureza, sob uma qualquer forma; do último acontecimento mundial ou do acontecimento anônimo da minha rua. Na gruta de Altamira disse; eu estava aqui na época em que gravaram estes bichos. As portas da percepção abriram-se no momento-luz inicial dos tempos; talvez nunca se fechem. O minúsculo animal que sou acha-se inserido no corpo do enorme Animal que é o universo. Excitante, a minha fraqueza: alimenta-se dum foco de energia em contínua expansão.

(C)
De substrato pagão; covarde; oscilante; incapaz de habitar o faminto, o leproso, o pária; aterrorizado ante a cruz trilíngüe — máximo objeto realista — oclusa ao olho dos doutores, travestida pela montagem teatral de Roma barroca-poliédrica; obsedado pelo Alfa e o Ômega; bêbado de literatura, religião, artes, música, mitos; imbêbado de política, economia, tecnologia; expulso dos teoremas; tachado de analfabeto pelo físico nuclear e pela história, dama agitadíssima; consciente da força agressiva do mundo moderno, da espantosa ambigüidade da natureza humana, indecisa entre adorar a matéria ou destruí-la; dinâmico na inércia, inerte no dinamismo, sou.

Murilo Mendes, Poesia Completa e Prosa.