John Cage / Morton Feldman: Radio Happenings I - IV
Nova Iorque, de julho de 1966 a janeiro de 1967
3 de fevereiro de 2015
1 de fevereiro de 2015
cheguei cedo àquele ponto da vida em que as escolhas são feitas consoante se submetem em absoluto à vontade que tenho de as fazer. como a única pessoa viva que vê a minha vida sou eu própria, compreendo que por vezes as minhas escolhas possam parecer desprovidas de sentido para os outros. o sentido é de resto uma ideia que só interessa aos outros, aos leitores, aos biógrafos, à família, aos amigos, e no que me diz respeito, há muito que me desfiz dela. há, no entanto, certa classe de vontades, mais rara, que se confunde em absoluto com o sentido. mostram-se altivas porque nos sabem submetidos à sua clareza. e não é raro que estejamos de facto submetidos, é mesmo difícil, embora não impossível, deixarmos de nos submeter, especialmente à sua alegria. mas (feliz ou infelizmente, que não é meu lugar saber pois não fui eu que a criei e portanto não sei para que serve) em jogo com a vida nem a determinação chega nem as evidências se bastam. há evidências que com o tempo se transformam em logros e por sua vez quimeras que ganham viço, surpreendendo-nos um dia com toda a sua perfeição e beleza. pode haver milhares de razões a sustentar uma escolha; tenha ou não sentido, siga mais ou menos amplamente a nossa vontade, nenhuma delas lhe confere a certeza e o garante de ser uma boa escolha. quando vou a uma loja escolher uma caneca, é o objetivo da compra que vai determinar a escolha: se quero uma caneca que dure, se quero uma que seja bonita, se quero uma caneca que dure e seja bonita ou se quero uma caneca terrivelmente feia. mas nem toda a agudeza dos nossos sentidos, aprimorados ao longo de anos de evolução mais uma vida ainda a fazer-se, irão garantir que aquela caneca terrivelmente feia e praticamente inquebrável, não vá desaparecer da cozinha do escritório onde trabalho e para onde a levei. os otimistas dizem que se soubermos bem o que queremos não o falhamos. não saber o que se quer é assim como não ter para onde ir. o que me lembra Porthos, o mosqueteiro grande e desajeitado, a correr para fora do subterrâneo onde acabou de depositar uma bomba e onde morrerá a pensar como é que poe um pé à frente do outro. é este o ponto em que se exercem as escolhas: qual é a natureza da evidência que as suporta? há evidências que estão manchadas pela fantasia, outras pelo desejo, pela ambição, pela inveja. há evidências obscuras, cuja força pode guiar uma vida inteira, e que antecipam no seu íntimo a mais simples clareza. e o amor é da natureza da evidência? se assim fosse não amaríamos os filhos da mesma maneira? e no entanto: haverá sentido em perguntar qual foi o filho que mais custou a Medeia matar? o que é possível escolher? quando a caneca desaparece do escritório não deixa de ser praticamente indesejável e praticamente inquebrável. os pintores por exemplo, passam a grande maioria do seu tempo a tentar obter a cor que já veem. e pintores, escolheram ser?
os nossos juízos, de todas as operações mentais a mais espontânea, não são ideias porque não são pensamentos, mas sim aquilo que diz da validade de um conteúdo de pensamento. não revelam rigorosamente nada da vida psíquica do que emite àquele que compreende. os juízos são unívocos porque dizem respeito à compreensão (e não apenas à interpretação, que pode ser múltipla e portanto equívoca) de um conteúdo de pensamento. ora, a relação da ação com a vida mental é constante. o ato é aquilo que podemos ver de outrem e o que os outros mostram é sempre parcial, condicionado pelo possível e pelo tempo, ou seja, pela própria estrutura do eu e pela História. sem nunca corresponder a uma definição total da vida interior, toda a ação revela também o seu negativo: aniquila tudo o que não é ela própria. somos sempre – e apenas – uma parte de nós próprios. o paradoxo está em que, conscientes disto ou não, o conhecimento está sempre dificultado pelo que se encontra oculto. para me ajudar a orientar nesse breu, um amigo disse-me uma vez que devemos escolher aquilo que gostaríamos de poder fazer até morrer. uma evidência não pode ser persuasiva. não se avalia pelo seu grau de sinceridade, pela realidade que a possa confirmar. a possibilidade e impossibilidade são-lhe anteriores ou posteriores, mas não se lhe ajustam. nunca a força da nossa convicção serve para avaliar uma evidência, diria mesmo que serve apenas para termos cuidado com ela. as evidências só se tornam evidências quando nos tornamos a nossa própria escolha: a firmeza de uma evidência está na sua naturalidade.
não é sem prazer que vejo a alegria excêntrica dos primeiros anos da minha vida converter-se aos poucos numa alegria branda, cada vez mais ténue, e a braços com o grande desconhecido do presente. talvez morra reduzida a um mero sorriso, demasiado subtil por não se dirigir a nem ser visto por ninguém. haja sorte.
os nossos juízos, de todas as operações mentais a mais espontânea, não são ideias porque não são pensamentos, mas sim aquilo que diz da validade de um conteúdo de pensamento. não revelam rigorosamente nada da vida psíquica do que emite àquele que compreende. os juízos são unívocos porque dizem respeito à compreensão (e não apenas à interpretação, que pode ser múltipla e portanto equívoca) de um conteúdo de pensamento. ora, a relação da ação com a vida mental é constante. o ato é aquilo que podemos ver de outrem e o que os outros mostram é sempre parcial, condicionado pelo possível e pelo tempo, ou seja, pela própria estrutura do eu e pela História. sem nunca corresponder a uma definição total da vida interior, toda a ação revela também o seu negativo: aniquila tudo o que não é ela própria. somos sempre – e apenas – uma parte de nós próprios. o paradoxo está em que, conscientes disto ou não, o conhecimento está sempre dificultado pelo que se encontra oculto. para me ajudar a orientar nesse breu, um amigo disse-me uma vez que devemos escolher aquilo que gostaríamos de poder fazer até morrer. uma evidência não pode ser persuasiva. não se avalia pelo seu grau de sinceridade, pela realidade que a possa confirmar. a possibilidade e impossibilidade são-lhe anteriores ou posteriores, mas não se lhe ajustam. nunca a força da nossa convicção serve para avaliar uma evidência, diria mesmo que serve apenas para termos cuidado com ela. as evidências só se tornam evidências quando nos tornamos a nossa própria escolha: a firmeza de uma evidência está na sua naturalidade.
não é sem prazer que vejo a alegria excêntrica dos primeiros anos da minha vida converter-se aos poucos numa alegria branda, cada vez mais ténue, e a braços com o grande desconhecido do presente. talvez morra reduzida a um mero sorriso, demasiado subtil por não se dirigir a nem ser visto por ninguém. haja sorte.
31 de janeiro de 2015
Before Diagnosis
The lake is dead for a second time
this January. And no matter
how many geese lay their warm breasts
against the ice or fly across
its hard chest, it doesn’t break,
or sink, or open up and swallow them.
The ice is frozen water.
There is no metaphor for exile.
Even if these trees continue to shake
the crows from their branches,
my sister is still farther away from her mind
than we are from each other
sitting on opposite ends of a park bench
waiting for evening to swallow us whole.
In the last moments of a depressive, a sun.
In the last moments of a sun, my sister
says a man is chasing a goose through the snow.
Roger Reeves
The lake is dead for a second time
this January. And no matter
how many geese lay their warm breasts
against the ice or fly across
its hard chest, it doesn’t break,
or sink, or open up and swallow them.
The ice is frozen water.
There is no metaphor for exile.
Even if these trees continue to shake
the crows from their branches,
my sister is still farther away from her mind
than we are from each other
sitting on opposite ends of a park bench
waiting for evening to swallow us whole.
In the last moments of a depressive, a sun.
In the last moments of a sun, my sister
says a man is chasing a goose through the snow.
Roger Reeves
Nunca conseguirás nada se te abandonares a ti mesmo,
mas pensa em tudo o que te faltará se ficares dentro do teu próprio
círculo. A esta admoestação respondo apenas: também eu preferiria
receber os golpes dentro do meu círculo a infligi‑los fora dele, mas
onde diabo está este círculo? Durante muito tempo vi‑o sobre a terra,
como se desenhado com cal, mas agora apenas paira à minha volta, não,
não paira sequer.
Kafka, Diários de Viagem.
Kafka, Diários de Viagem.
30 de janeiro de 2015
Tal como um rio que se perde em subterrâneos para depois aparecer à superfície, os homens assistem às metamorfoses do seu espírito, que muda de qualidade mas mantém a sua medida. O seu jogo de permutas tem um valor pessoal e particular inconfundível, que atravessa a obscuridade do tempo, a intenção do intelecto e a obsessão do ícone (mesmo que vazio), resultando invariavelmente numa semântica nova. A densidade de um fenómeno é relativa. O que há de mais peremptório num fenómeno é esta região imaterial da imaginação e da memória, cuja rutura nos conduz ao cerne de todo o movimento. E o que se encontra no cerne do movimento? Constância. Toda a agitação da vida humana está diluída na abertura inumerável. Os melancólicos, os serenos, os violentos, os dramáticos, os frágeis, corpos imponderavelmente enlaçados cujos liames permanecem secretos e incorruptíveis.
29 de janeiro de 2015
25 de janeiro de 2015
23 de janeiro de 2015
às vezes conto uma história só para poder dizer o nome de uma personagem. a história é relativa. o que acontece, tanto acontece depois de uma esquina como acontece do lado de lá de uma porta e dentro de um vagão de comboio. o que existe é esse nome, com o seu tempo, o seu lugar, a sua pontuação e o seu corpo próprios.
22 de janeiro de 2015
19 de janeiro de 2015
a primeira coisa em que repara quando entra é num ramo de flores secas ao fundo da sala. estão dentro de um jarro de vidro opalino azul, em cima do parapeito da janela maior, e há pétalas perto da base e no chão. apesar de secas, mantêm uma cor viva, sobretudo nas extremidades. conversam animados quando entram, estão a despir os casacos, compridos, molhados, a pousar os guarda-chuvas, as malas, os livros. ela é morena, o cabelo fino está apanhado na nuca, usa-o quase sempre assim. tem um pequeno gancho de lado, um gancho invisível que usa como adorno, como outra mulher teria usado um laço vermelho ou um gancho de marfim. estou a vê-la, poderia desenhar cada detalhe do seu rosto, do seu corpo, mas não quero descrevê-la para além disto. tem os lábios rosa escuro. está a falar. a ele não o vejo. sei que está ali, atrás dela. também despiu o casaco, segura-o ainda no braço esquerdo, que está dobrado. está de costas, não a viu olhar para o jarro, embora ela o temesse e por isso olhasse furtivamente para ele, para perceber se tinha sido vista a ver. está curvado para o chão a arrumar qualquer coisa parece-me. ela vê o jarro e baixa o olhar como se, sem intenção, tivesse visto uma cena muito íntima, como se qualquer coisa muito íntima tivesse sido exposta ao seu olhar. não tem a certeza que ele não tenha reparado. baixa os olhos, não consegue voltar a olhar para elas quando entram na sala, está tensa. coloca-se de lado, os braços cruzados, a atenção atraída para as flores secas. agora começo a vê-lo. ela pensa naquilo e quase não o ouve. pensa em porque teria ido ali hoje. pensa que nada há de mais natural do que ter encontrado alguma coisa da intimidade da pessoa que habita aquele apartamento. ¿que outro sítio para a intimidade estar exposta? ¿porque sente pudor perante um ramo de flores secas e não perante a meia suja caída junto do pé do sofá, essa sem qualquer relevância para ela? ¿o que poderia haver de íntimo — estranha escolha de palavra — num ramo de flores a secar, um ramo porventura esquecido à beira de uma janela? melhor: ¿o que é que na intimidade lhe provocava pudor? ali estava, entre as coisas dele, transtornada a pensar nas flores e a olhar para ele, que fazia mil coisas enquanto conversavam. ainda não se tinham sequer sentado. ele falará do ramo de flores. mais tarde, ao jantar. é um homem bastante alto, pouco mais novo do que ela. tem uma voz surpreendentemente grave. quando sorri olha sempre para ela. de resto quase nunca. fala muito, faz coisas enquanto fala, muitas delas coisas que nunca acabam e não têm significado, é falsamente irrequieto. depois do jantar, apagará a luz da sala, dirigir-se-á a ela na penumbra.
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