voltei a sonhar com as minhas mãos e, como sempre, quando acordei não me lembrava. foi quando estava a ver um vídeo na
exposição da Sara & André que as imagens voltaram, como memórias de um acontecimento ainda a fazer-se, porém já irrecuperável e inacessível.
o vídeo chamava-se
mãos, cabelos e primeiro vi os cabelos. no topo de duas cabeças que se moviam lentamente, o brilho dos cabelos, negros e louros, tenuemente iluminados diante de um fundo negro. enquanto assistia, automaticamente imaginei as mãos, antes de aparecerem. imaginei dois pares de mãos erguidas, mostrando claramente os dedos, rodando sobre si para mostrar a palma e as costas. mal imaginei a imagem, dois pares de mãos aparecem no écrã que, para meu choque, se tocavam. tocavam-se como se não pudessem existir separadamente e eu nem sequer tinha imaginado a possibilidade de se tocarem. o meu sonho reapareceu nesse momento, confusamente, esparso e em simultâneo às perguntas. porque nem me ocorreu que as mãos se pudessem tocar? de contrário, na minha imaginação, separei-as claramente, exatamente como se não pudessem tocar-se, porventura até como se não pudessem tocar em nada. umas mãos não são feitas para tocar, agarrar, pegar, escarafunchar, amassar, apalpar? que função lhes reservo para além dessa, que a torna impura e impede? terei destituído as minhas mãos de qualquer função?
no meu último sonho aconteceu uma coisa que nunca acontece, aconteceu aquilo que não pode acontecer, aquilo que é proibido, tabu: verem as minhas mãos. a mera sugestão da possibilidade de tocá-las é já o horror que transforma o sonho num pesadelo de tal forma insuportável que me escondo imediatamente na vigília. um ver que é tocar, um ver que me atinge, me fere.
enquanto caminhava na rua pensava nas minhas mãos e em como novamente não devia ter saído de casa sem as arranjar. precisava de cortar as unhas, cortar pequenas peles que crescem sobre as unhas, cortar todas estas coisas que continuamente crescem e se estendem a partir delas. excrescências que, se descontroladas, podem privar-me da sua existência - talvez devesse colocar sua entre parênteses - como no sonho em que as mãos se transformavam num casulo de pele branca. eu pensava nisto e de vez em quando olhava com repulsa para elas, repulsa e vergonha, quando subitamente, a pessoa que caminhava a meu lado, também as vê. assim que as vê olha-me nos olhos e diz «tens de arranjar as mãos.» não chego a responder. acordo.