Aquele que escreve, escreve como um eterno convalescente.
(...) Nietzsche vê como um dever proteger-se daqueles que o lêem, impedindo-os de se embrenharem demasiado naquilo que os horrorizaria: o acesso ao percurso do espírito que se torna livre (...).
O espírito que se está a tornar livre sabe que daí em diante o “que tu deves” se submete àquilo que só agora lhe é permitido.
26 de outubro de 2014
Instruções para a queda
mãe como limpo estas manchas do nascimento
se tenho um rosto nas mãos
bordado
pai não me ensinou a fugir
só a ficar quieta e a não fazer barulho
- empunhando uma espingarda
apreciarás o silêncio e a camuflagem -
mas o meu defeito é sempre o mesmo:
embalar o animal entre a carne e o sonho.
tudo o que estávamos
dispostos a destruir
María Sánchez
mãe como limpo estas manchas do nascimento
se tenho um rosto nas mãos
bordado
pai não me ensinou a fugir
só a ficar quieta e a não fazer barulho
- empunhando uma espingarda
apreciarás o silêncio e a camuflagem -
mas o meu defeito é sempre o mesmo:
embalar o animal entre a carne e o sonho.
tudo o que estávamos
dispostos a destruir
María Sánchez
é assim como um grande mapa de travessias, cuja origem se perdeu da memória e de destino desconhecido. alguns trilhos permanecem visíveis mas a grande maioria deixou há muito de ser reconhecível e os rios alastraram os caudais ocultando os indícios das civilizações que os sulcaram. não se sabe hoje se os deuses olharam por esses homens e se a língua que falavam criava elos. o que deles resta é este mapa, ele próprio a desaparecer, de travessias insondáveis e íntimas. músicos houve que procuraram, sem sucesso, converter essas linhas delicadas e invulgares em melodias coevas mas nunca mais se ouviu falar neles. um arqueólogo decidiu rumar até esse território mas não chegou a transpor a porta de sua casa e aí ficou até hoje onde, dia após dia, o podemos ver preparado para partir sem nunca chegar a mover-se. os físicos disseram que só os poetas poderiam falar sobre esse mapa e os poetas calaram-se. houve sim uma criança que falou, mas ninguém a ouviu e dela nada se sabe. dois filósofos, um muito obscuro e outro muito controverso, que nunca ouviram falar um do outro, dizem que o mapa não é realmente um mapa porque nada há nele que indique uma relação entre possíveis. cada um com o seu vocabulário particular, afirmam que se trata de um fragmento: a raiz de uma palavra que nunca foi dita, o vestígio de um acontecimento que abortou, o princípio turvo de uma visão que não passou de incognoscível. o que parece ser mais peculiar nessa carta, contudo, é a sua qualidade indestrutível. não da matéria em que está inscrita, uma rede feita de velocidades claramente definidas e intercaladas por espaços vazios, mas da impressão que o desenho dos trilhos inscreve naquele que os observa pela primeira vez. o movimento negro em expansão desses padrões incompletos, transmite a sensação de nos serem vizinhos e, a acreditar no que todos descrevem, a revelação dessa familiaridade é insuportável.
25 de outubro de 2014
24 de outubro de 2014
As dores têm de ser suportáveis - apenas porque somos nós que as estabelecemos; e nós não sofremos mais do que nelas nos empenhamos.
Todas as dores têm de ter um máximo - quer dizer que todos os estados desagradáveis devem ter a sua definição - as suas fronteiras, as suas ordens - sujeitas às mesmas leis dos estados de prazer. A suprema dor não pode ser senão um instante.
Novalis, Fragmentos.
Todas as dores têm de ter um máximo - quer dizer que todos os estados desagradáveis devem ter a sua definição - as suas fronteiras, as suas ordens - sujeitas às mesmas leis dos estados de prazer. A suprema dor não pode ser senão um instante.
Novalis, Fragmentos.
como a borboleta, em cujo voo o colapso está já inscrito, o prazer associava-se ao sono, através do qual realizava a única possibilidade de identificação com o mundo. desse colapso as coisas novas nasciam, não como um milagre, mas precisamente como negações do milagre. nasciam para se desmentir, para afirmar o silêncio de que provinham e a beleza que nele se encontra. porque não se pode fazer mais do que afirmar, mesmo que dentro do colapso, ainda através dele, se formos capazes. a pura solidão é alegria pois é radicalmente constituída pela gratidão da vida. no colapso, a solidão dá lugar ao isolamento e o possível regressa à infância, ao íntimo desejo de partir para uma manhã fresca como um crime que esvaziasse o oceano.
23 de outubro de 2014
21 de outubro de 2014
20 de outubro de 2014
Como gosto muito de ouvir contar histórias, acreditei mais nas histórias que me contavam do que na minha própria. O facto da minha ser radicalmente diferente, porque única, tornava-a inverosímil. Fiquei em silêncio, deliciada, a escutar atentamente, mas nunca me ocorreu que também eu tivesse um lugar no mundo e assim, porventura, acabei por perdê-lo de vista. Vejo medo e solidão, por toda a parte corpos a apodrecer no passeio, nos mesmos lugares onde hordas de turistas bebem, comem e falam alto. Neles também, totens exilados da sua tribo que entoam canções indolentes, é ainda a morte que eu vejo. Por vezes também vejo coisas belas, muito simples, como um encolher de ombros hoje, em resposta ao meu lacónico «tudo bem?». É uma cidade estranha esta. Faço longas caminhadas sem encontrar ninguém. O ar quente deste verão tardio está pesado e sujo. São estas as coisas que desejamos, têm luz ofuscante que só podemos ver com manchas. Eu própria carrego uma sombra que me arrasta o passo e sem dúvida é ela que contamina tudo o que vejo. A minha linguagem recua cada vez mais à infância, tornando-se, se é isso possível, ainda mais simples do que na infância. Muito pobre. Incompreensível. Assisto a esse movimento e finalmente compreendo que acreditarmos em nós próprios significa acreditarmos na nossa própria história. Mas acreditar, e é isto que só agora percebo, é o equivalente a não ter ilusões. Nada me falta afinal. Enquanto tudo o resto é vago, lembro-me. A minha maneira de escolher sempre foi rígida e não tive direito a substitutos. Que exótica é a minha dor. Sem resguardo possível. Creio até que a minha fragilidade é a minha maior força. E no entanto, que fina é a fronteira que a separa da loucura...
Tenho a sensação de ouvir o barulho das ondas. Não está aqui, não existe, e mesmo assim abafa tudo o resto. É o que tenho de mais plausível para contar.
Tenho a sensação de ouvir o barulho das ondas. Não está aqui, não existe, e mesmo assim abafa tudo o resto. É o que tenho de mais plausível para contar.
19 de outubro de 2014
Tenho
um grande defeito: não quero aprender através de alguém que me diga:
"Faz-se assim." Queria descobrir. Por isso é que posso esperar 20 anos.
Não quero que me digam: "Não percebes, mas é isto." É uma machadada em
mim. Não tem nada que ver com orgulho. Nada, nada, nada. Tem que ver com
uma autodescoberta que acabava de perder.
Maria Filomena Molder
Maria Filomena Molder
18 de outubro de 2014
O consultório do meu pediatra tinha as paredes negras. A secretária
dele, diante da qual eu me sentava numa cadeira ao lado da minha mãe,
com um bloco cheio de desenhos da sala de espera na mão (que não queria
mostrar a ninguém) era de vidro, e sobre ela, um candeeiro largo e
redondo iluminava toda a sala com uma luz amarela suave. Ao lado do divã
havia outra luz, na extremidade de um candeeiro de pé alto muito fino,
que ele deslocava sobre o meu corpo. Havia uma balança de onde
eu descia sempre para ouvir que tinha de comer mais e usavam-se
espátulas de madeira para ver a garganta, que davam vómitos. Lembro-me
dele, simpático e careca. Lembro-me do nome dele. Lembro-me da voz dele.
De tudo isto me lembro porque numa das paredes do consultório havia um
poster do The Kid. Era um poster a preto e branco absolutamente
gigantesco pelo qual fiquei hipnotizada no momento em que o vi pela
primeira vez. Duas pessoas, um adulto e uma criança, estavam sentadas no
degrau de uma porta. Lado a lado, apertados na ombreira para
conseguirem caber os dois. O meu pediatra era
a-pessoa-que-tinha-o-poster. Um mago, um sábio, um alquimista, na sua
caverna negra de luz suave e quente, com voz doce e grave, que resolvia
tudo. Apercebendo-se do meu fascínio, pois desde que chegava ao
consultório arranjava sempre maneira de ficar a olhar para as figuras no
poster, um dia, estava eu deitada no divã, perguntou-me sorridente, com
um olho virado para mim e o outro para a minha mãe: «Achas que estão
tristes ou alegres?» A pergunta deixou-me perplexa e não respondi.
Pensei naquilo muito tempo e durante muito tempo voltei ao consultório
sem saber a resposta. Para meu grande alívio, ele nunca mais voltou ao
assunto. O meu problema não estava em achar que aquelas pessoas pudessem
estar imersas numa ou noutra dessas emoções, permanecendo contudo
indecisa sobre elas. O meu problema era justamente achar que não estavam
tristes. E que também não estavam alegres. Portanto, se não era
tristeza, mas também não era alegria, essa outra coisa, o que era? Estava
no olhar e no corpo deles, adulto e criança, maltrapilhos e sujos (não
como quem tivesse acabado de jogar à bola mas como quem era muito
pobre). Era uma dádiva. E era a única coisa em que eu queria pensar.
17 de outubro de 2014
16 de outubro de 2014
(...) Assim não é apenas a vida privada que nos acompanha enquanto
clandestina na nossa breve ou longa viagem, mas a própria vida corpórea e
tudo o que tradicionalmente se inscreve na esfera da chamada
“intimidade”: a nutrição, a digestão, o urinar, o defecar, o sono, a
sexualidade… E o peso desta companheira sem cara é tão forte que todos o
procuramos partilhar com um outro – e todavia a estranheza e a
clandestinidade nunca desaparecem e permanecem irresolúveis até na mais
amorosa das convivências. A vida aqui é verdadeiramente como a raposa
roubada que o rapaz esconde sob as suas roupas e não pode confessar
ainda que lhe dilacere atrozmente a carne.
É como se cada um sentisse obscuramente que a própria opacidade da vida clandestina encerra em si um elemento genuinamente político, e como tal por excelência partilhável – e todavia, se o tentamos partilhar, foge obstinadamente à sua prisão e não deixa senão um resíduo ridículo e incomunicável. O castelo de Silling, no qual o poder político não tem outro objecto que a vida vegetativa dos corpos é neste sentido a figura da verdade e, do mesmo modo, o fracasso da política moderna – que é na verdade uma biopolítica. Ocorre mudar a vida, levar a política ao quotidiano – e no entanto, no quotidiano, o político não pode senão naufragar.
E quando, como sucede hoje, o eclipse da política e da esfera pública não deixa subsistir senão o privado e a vida nua, a vida clandestina, que se torna a única dona do campo, deve, enquanto privada, publicitar-se e tentar comunicar os seus próprios já não risíveis (e todavia ainda tais) documentos que coincidem agora imediatamente com ela, com as suas jornadas indistintas filmadas ao vivo e transmitidas pelos ecrãs aos outros, uma após a outra.
E, no entanto, apenas se o pensamento for capaz de encontrar o elemento político que se escondeu na clandestinidade da existência singular, apenas se para lá da cisão entre público e privado, política e biografia, zoè e bios, for possível delinear os contornos de uma forma de vida e de um uso comum dos corpos, a política poderá sair do seu mutismo e da biografia individual da sua idiotez.
É como se cada um sentisse obscuramente que a própria opacidade da vida clandestina encerra em si um elemento genuinamente político, e como tal por excelência partilhável – e todavia, se o tentamos partilhar, foge obstinadamente à sua prisão e não deixa senão um resíduo ridículo e incomunicável. O castelo de Silling, no qual o poder político não tem outro objecto que a vida vegetativa dos corpos é neste sentido a figura da verdade e, do mesmo modo, o fracasso da política moderna – que é na verdade uma biopolítica. Ocorre mudar a vida, levar a política ao quotidiano – e no entanto, no quotidiano, o político não pode senão naufragar.
E quando, como sucede hoje, o eclipse da política e da esfera pública não deixa subsistir senão o privado e a vida nua, a vida clandestina, que se torna a única dona do campo, deve, enquanto privada, publicitar-se e tentar comunicar os seus próprios já não risíveis (e todavia ainda tais) documentos que coincidem agora imediatamente com ela, com as suas jornadas indistintas filmadas ao vivo e transmitidas pelos ecrãs aos outros, uma após a outra.
E, no entanto, apenas se o pensamento for capaz de encontrar o elemento político que se escondeu na clandestinidade da existência singular, apenas se para lá da cisão entre público e privado, política e biografia, zoè e bios, for possível delinear os contornos de uma forma de vida e de um uso comum dos corpos, a política poderá sair do seu mutismo e da biografia individual da sua idiotez.
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