Mas é esta a regra dos jogos do imaginário: perde-se neles aquilo que ao mesmo tempo
se conquista.
Nicole Loraux, in Maneiras Trágicas de Matar uma Mulher
11 de agosto de 2014
10 de agosto de 2014
A voz dela continua a ressoar em mim com mais veemência do que a maioria dos acontecimentos mais importantes da minha vida. Dizia coisas que me faziam sempre olhar por cima do ombro e me deixavam perplexa quando, por fim, constatava que o destinatário era eu. Recordo com ternura as nossas conversas e continuo a ter pudor em reproduzir essas frases onde me encontrei num espelho mais belo do que eu, pois para mim a beleza era ela. Só muito mais tarde percebi que qualquer coisa em mim sustentava o seu amor de uma impassível fidelidade e que também eu era única para ela.
Não a vejo há muitos anos e, ao contrário do que pensei que sucederia, não sinto a sua falta. O que me dizia viaja comigo para onde vou, a par do silêncio que se instalou e de tudo o que aprendi com ela. A viver, creio.
Costumava pedir-me que lhe desenhasse e um dia senti uma irresistível vontade de a desenhar a ela. Desenhei um busto preenchido com flores a nascer continuamente, uma profusa confusão de flores ocultadas pelos traços delicados do seu rosto. Quando ela desenrolou o desenho fez-me o elogio mais terrível que alguém pode receber e no dia seguinte encontrei-o emoldurado, no meio das obras dos pintores que eu admirava nas paredes de sua casa. Com ela o inimaginável estava sempre a acontecer, como quando me deixou um cartão dos Simpsons em cima da cama onde o Homer dizia «surpreendes-me», quando me disse que «a questão não é essa mas sim que tu, não percebo como, continuas pura», que «hoje também foi importante para mim» e que «devias dedicar-te à escrita e a mais nada». Ou como quando a fazia chegar às lágrimas, ela que raramente ria.
Talvez tenha sido esse mesmo o caminho que nos levaria a assumir o silêncio como a única possibilidade. Há amores que só sobrevivem desatando os nós.
Não a vejo há muitos anos e, ao contrário do que pensei que sucederia, não sinto a sua falta. O que me dizia viaja comigo para onde vou, a par do silêncio que se instalou e de tudo o que aprendi com ela. A viver, creio.
Costumava pedir-me que lhe desenhasse e um dia senti uma irresistível vontade de a desenhar a ela. Desenhei um busto preenchido com flores a nascer continuamente, uma profusa confusão de flores ocultadas pelos traços delicados do seu rosto. Quando ela desenrolou o desenho fez-me o elogio mais terrível que alguém pode receber e no dia seguinte encontrei-o emoldurado, no meio das obras dos pintores que eu admirava nas paredes de sua casa. Com ela o inimaginável estava sempre a acontecer, como quando me deixou um cartão dos Simpsons em cima da cama onde o Homer dizia «surpreendes-me», quando me disse que «a questão não é essa mas sim que tu, não percebo como, continuas pura», que «hoje também foi importante para mim» e que «devias dedicar-te à escrita e a mais nada». Ou como quando a fazia chegar às lágrimas, ela que raramente ria.
Talvez tenha sido esse mesmo o caminho que nos levaria a assumir o silêncio como a única possibilidade. Há amores que só sobrevivem desatando os nós.
9 de agosto de 2014
Eu estava apaixonada por um rapaz que não valia um xaveco e a aperceber-me disso. Antes de desaparecer escrevi-lhe uma carta que de tão pura me fez hesitar entregar-lha. Lembro-me especialmente da última frase, que falava de animais selvagens à entrada da noite. Mas fosse como fosse, já tinha percebido que tinha queda para o abismo e a carta era efetivamente para ele. Decidi assim enviar-lhe a carta mais perfeita que conseguisse escrever. Demorei vários dias e quando ficou pronta mostrei a uma amiga para que ela, que conhecia a história, me dissesse se estaria a ser demasiado dura. Vi o rosto dela mudar enquanto lia a carta. Quando acabou devolveu-a às minhas mãos e disse muito grave: «Ele não vai perceber nada. Mas entrega-a. Pelo menos fica a saber quem tu és.»
8 de agosto de 2014
Parte-se sempre no momento certo quando não se deixa nada para trás e se sabe que não se regressa. Cansaço de ter curvado o corpo sobre a terra, felicidade de não ter nada, nem mesmo um horizonte para a viagem. Partir sem horizonte, partir de si próprio, sem comoção nem esperança. Nem canto nem ardo como a Fénix, apenas me dispo e mergulho em águas demasiado antigas, que a tudo renovam e me conhecem.
No meu sonho da noite passada o amor era novamente relacionado a uma máquina. Eu era já muito velha quando ele finalmente a completou e, pondo um fim à minha espera, a acionou pela primeira vez, fazendo soar uma música que chegando às mais altas esferas, trouxe o meu sorriso à vigília. Impressionou-me - perturbou-me - a força desse sorriso, que não encontrou em mim resistência ainda que no meu corpo fossem visíveis as marcas do sofrimento, de todas a mais cruel sendo a do tempo que passou. Impressionou-me menos que tivesse esperado, apesar de em todo esse tempo não haver quaisquer sinais que indicassem que um dia o amor chegaria. No fundo, o sorriso que o meu rosto trazia quando acordei vinha desde aí, primeiro secreto, depois a preencher o universo, concedendo-lhe a razão que o excedia. Era bom sorrir esse sorriso, um pouco como dizer: «Agora não me chateies mais e sê finalmente o chão que és para eu dançar». Mas nem ele, perfeito que era, apagou a revolta que estes sonhos me trazem por invadirem o meu sono quando me esvaziei deles. E acordo sentindo-me violada não sei por que força que contra a minha vontade me faz continuar a sonhar.
4 de agosto de 2014
Dizem que na floresta a Fénix era ignorada pelos outros animais. Ave
silenciosa, pequena, muito velha, passava o seu tempo a observar tudo o
que a rodeava.
No dia em que decide morrer, a Fénix atravessa a floresta e canta pela primeira vez. Atraídos por esse som singular, todos os animais a seguem através da floresta, ficam a ouvi-la e observam-na construir a pira onde arderá minutos mais tarde.
No centro da pira a Fénix volta-se para o sol e abre as asas para terminar a sua canção, mostrando todas as suas cores. Reconhecendo que o seu tempo chegou ao fim, incendeia-se perante os seus pares, assombrados pela canção que não voltarão a ouvir.
Renasce nove dias depois para voltar a envelhecer silenciosa.
No dia em que decide morrer, a Fénix atravessa a floresta e canta pela primeira vez. Atraídos por esse som singular, todos os animais a seguem através da floresta, ficam a ouvi-la e observam-na construir a pira onde arderá minutos mais tarde.
No centro da pira a Fénix volta-se para o sol e abre as asas para terminar a sua canção, mostrando todas as suas cores. Reconhecendo que o seu tempo chegou ao fim, incendeia-se perante os seus pares, assombrados pela canção que não voltarão a ouvir.
Renasce nove dias depois para voltar a envelhecer silenciosa.
3 de agosto de 2014
A maior história de sempre é a da Bela Adormecida. Questões de natureza, como as que são levantadas na história do escorpião e do sapo, não me mantinham acordada quando a minha mãe enfim se levantava e saía do quarto. O choque da compreensão de todos os porquês causava-me uma certa alegria, ainda que por vezes uma alegria ansiosa do futuro, ansiosa pelo momento em que pudesse ver todas essas coisas manifestarem-se aos meus olhos: o mundo tal como ele é fascinava-me. Na história da Bela Adormecida havia contudo algo que era acrescentado ao mundo. E esses símbolos intrigavam-me.
O primeiro momento está logo no início: os dons das fadas. Dons que se oferecem, poderes a que a as nossas decisões se subordinassem. Não conseguia perceber a sua origem e o seu fim e contudo toda a história estava já contada neles, apenas não acontecida. O que significava então acontecer?
O momento posterior são os 100 anos do sono em que a princesa e o seu reinado mergulham e a floresta de espinhos que os envolve. Apenas aqueles que não fazem parte desse mundo permanecem acordados e apesar de serem vários os intrépidos aventureiros, há um cuja aproximação basta para desfazer os espinhos. Isto parecia-me injusto e deixava-me com vontade de resgatar os mortos: se nem sequer teve de enfrentar espinhos, que raio de força era a desse príncipe?
Restava enfim esse país de sono, vedado, interdito, secreto, e o que haveria nele, sonhos ou pesadelos, de que não era possível acordar.
O primeiro momento está logo no início: os dons das fadas. Dons que se oferecem, poderes a que a as nossas decisões se subordinassem. Não conseguia perceber a sua origem e o seu fim e contudo toda a história estava já contada neles, apenas não acontecida. O que significava então acontecer?
O momento posterior são os 100 anos do sono em que a princesa e o seu reinado mergulham e a floresta de espinhos que os envolve. Apenas aqueles que não fazem parte desse mundo permanecem acordados e apesar de serem vários os intrépidos aventureiros, há um cuja aproximação basta para desfazer os espinhos. Isto parecia-me injusto e deixava-me com vontade de resgatar os mortos: se nem sequer teve de enfrentar espinhos, que raio de força era a desse príncipe?
Restava enfim esse país de sono, vedado, interdito, secreto, e o que haveria nele, sonhos ou pesadelos, de que não era possível acordar.
Conheci uma mulher que assim que encontrava alguém pegava-lhe nas mãos. Enquanto cumprimentava a pessoa, pegava em ambas as mãos com ambas as mãos, acariciava-as e apertava-as, como se procurasse conhecer as suas formas apenas através do tato. Tudo o que fazia com as mãos fazia como se fosse cega e, também como os cegos, nunca chegava a olhar para elas.
Durante anos fugi dela. Desde cedo, tinha ganho o hábito de esconder as mãos; muitas vezes ouvi quem o estranhasse. Geralmente tapava-as com as mangas do casaco ou da camisa mas às vezes também as enfiava nos bolsos. Quando - o que, por me trazer uma enorme angústia, era raro - vestia alguma coisa que não me dava hipótese de as esconder, cerrava os punhos e escondia os dedos, hábito que por vezes ainda me surpreende quando, apesar de mim, assim as encontro. Da mesma maneira, sonhava e continuo a sonhar frequentemente com mãos e sobretudo com as minhas mãos. No último que me lembro, estavam a cobrir-se de uma rede de pele morta e seca, palavras demasiado marcantes a contrastar com a sensação de profundo conforto que essa transformação me proporcionava.
Na altura em que andava a esconder-me dela na rua, não as arranjava. Achava-as feias e inúteis, portanto inútil também dedicar-lhes tempo. Quando a preocupação com elas se tornou excessiva ao ponto de me fazer ficar em casa para que ninguém as visse, comecei a tentar aceitá-las: uma delas, a esquerda, feminina, com dedos finos e pele macia, leve; e a direita, a que escreve, com um calo no dedo, dedos grossos e curtos, masculina, pesada. A manutenção dessa aversão por mim própria ressoava sobretudo quando encontrava esta mulher. Ambas eram inescapáveis e assustadoramente reais, precisamente como se se tratasse de um sonho.
Agora que ela faz parte da minha família, cada encontro é um teste. Há que viver a vida com algum desinteresse.
Durante anos fugi dela. Desde cedo, tinha ganho o hábito de esconder as mãos; muitas vezes ouvi quem o estranhasse. Geralmente tapava-as com as mangas do casaco ou da camisa mas às vezes também as enfiava nos bolsos. Quando - o que, por me trazer uma enorme angústia, era raro - vestia alguma coisa que não me dava hipótese de as esconder, cerrava os punhos e escondia os dedos, hábito que por vezes ainda me surpreende quando, apesar de mim, assim as encontro. Da mesma maneira, sonhava e continuo a sonhar frequentemente com mãos e sobretudo com as minhas mãos. No último que me lembro, estavam a cobrir-se de uma rede de pele morta e seca, palavras demasiado marcantes a contrastar com a sensação de profundo conforto que essa transformação me proporcionava.
Na altura em que andava a esconder-me dela na rua, não as arranjava. Achava-as feias e inúteis, portanto inútil também dedicar-lhes tempo. Quando a preocupação com elas se tornou excessiva ao ponto de me fazer ficar em casa para que ninguém as visse, comecei a tentar aceitá-las: uma delas, a esquerda, feminina, com dedos finos e pele macia, leve; e a direita, a que escreve, com um calo no dedo, dedos grossos e curtos, masculina, pesada. A manutenção dessa aversão por mim própria ressoava sobretudo quando encontrava esta mulher. Ambas eram inescapáveis e assustadoramente reais, precisamente como se se tratasse de um sonho.
Agora que ela faz parte da minha família, cada encontro é um teste. Há que viver a vida com algum desinteresse.
1 de agosto de 2014
30 de julho de 2014
Tenho saudades do toque da fábrica fiação e tecidos e do ar fresco, luz oblíqua, que o acompanhavam. Contra a fealdade e a violência, construí um mundo secreto feito de pormenores inoperantes, comuns. Servi-me da matéria do mundo para me proteger do mundo e alojei-me onde as contingências sucedem, por ser o único lugar tangível. A cada recusa das formas, aperfeiçoei o movimento do sim mas do não só conheço a amplitude e a serenidade que medeiam entre mim e a morte. Não preciso de explicações e não gosto de explicar. Ter de explicar alguma coisa é para mim o suficiente para me por em fuga para outras paragens. Assim tem sido e não se pode ser quem se não é. Gosto de pedras e do vento que as dissolve, como deuses que se fossem esquecendo sem zelo da humanidade. Ouço-me desde o tempo em que ainda não tinha nascido, o mesmo em que te sorri pela primeira vez. Quando anoitece, como agora, escrevo, e como tenho muito sono de manhã, sonho com as manhãs que foram feitas para escrever. Tudo está bem. Se não te dou mais notícias para além destas é porque continuamente descobrimos que não precisamos de palavras para nos entendermos. Que ironia.
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