A escola primária onde eu andei tinha um recreio enorme, cheio de labirintos, jogos, locais proibidos, locais perigosos, zonas vazias, sombra e sol, bancos compridos onde nos podíamos sentar todos juntos e bancos isolados que ninguém abordava quando estavam ocupados, canteiros e árvores, areia e pedras e até uma zona de fuga, que quase ninguém conhecia, e que dava acesso aos campos de cultivo por detrás da escola e através deles (para quem conhecesse o caminho), acesso à cidade.
Não me lembro quanto tempo durava o intervalo maior, mas pareciam ser horas, de resto, insuficientes. A campainha tocava e nós voltámos ao ponto exato onde a brincadeira tinha sido deixada no intervalo anterior. Mas para além do rigor, o que havia era sobretudo um envolvimento que nos deixava absolutamente absorvidos pelo que na brincadeira era ocasionado. Éramos atentos. Crescíamos rapidamente, e todos os planos, todas as percepções eram desenterradas aí.
Um dia, não sei como nem porquê, algo mudou. Entre dois intervalos, era como se alguém tivesse decidido alguma coisa sem me avisar: os meninos começaram a perseguir as meninas, pedindo-lhes que lhes mostrassem as cuecas. De repente criaram-se dois grupos e as meninas passaram a ter de fugir dos rapazes, que nos perseguiam e, como máquinas programadas para fazer apenas uma coisa, tentavam convencer-nos a mostrar-lhes as cuecas. Quando jogávamos speedball ou vólei ou à macaca, lá estavam eles, preparados para nos tocar subtil e inapropriadamente.
De início estávamos apenas surpreendidas pela reviravolta e achámos que duraria pouco. Mas passado uns dias a situação começou a mudar. A insistência tornou-se invasiva, repetitiva e chata. E fundamentalmente, já ninguém brincava. Então decidi agir.
Entre o fim de um intervalo e a hora de aulas que se seguiu, elaborei o meu plano. Antes de entrarmos cada um na sua sala, reuni os rapazes e pedi-lhes à pressa que no intervalo seguinte se encontrassem comigo à porta das casas de banho atrás do pavilhão desportivo. No intervalo corri para o local na expectativa da minha convocatória ter funcionado ou não, mas lá estavam eles. Expliquei-lhes então que tinha uma proposta a fazer-lhes, que era a seguinte: uma das casas de banho (a das meninas justamente) tinha um guardanapo no lugar da fechadura, que tinha caído, e nunca tinha sido arranjada. Eu iria entrar na casa de banho, ficar de pé, subir a saia e tirar o guardanapo para que cada menino pudesse espreitar pelo buraco da fechadura e ver as minhas cuecas. Em troca (não há almoços grátis), eles nunca mais podiam chatear as meninas.
Eu tinha umas cuecas do rato Mickey. E o resto é história.
21 de julho de 2013
20 de julho de 2013
17 de julho de 2013
Vivi com uma reprodução de um quadro de Rembrandt (The Mill, 1645-1648) até aos 18 anos. Lembro-me vagamente do dia em que chegou. Primeiro era apenas um objecto entre outros objectos acabados de adquirir. Só que este objecto levantou voo até à parede. E tinha coisas lá dentro. A minha mãe não gostava e disseram-me que o meu pai é que tinha insistido para o trazer. Lembro-me de achar que isso é que era o amor.
Isto - o quadro - intrigava-me. Não percebia bem o que era. Não sabia bem o que pensar dele. Um dia comecei-me a sentar à frente dele, na parede oposta, no chão, e ficava a olhar. Fazia isto dia após dia. Comecei a achar que o quadro precisava que olhassem para ele. Que se eu não olhasse para ele, ele não existia. Que para ele começar a existir, eu tinha de lhe dedicar o meu tempo e a minha atenção.
Às vezes ficava só a olhar para uma coisa, por exemplo, para a mulher que leva a criança pela mão ou para o barco que sai ou que chega ou para o moinho ou para o reflexo das árvores na água ou para a água ou para a ladeira ou para o buraco ao lado da ladeira (e ali começará uma ponte?) ou para a luz ou para a água, etc. Sei exactamente para onde olhei durante mais tempo, que foi para aquele céu a aparecer negro. Durante muito tempo esperei que acontecessem coisas maravilhosas: que aquilo tudo ganhasse vida e de repente chovesse, que as pessoas fugissem para casa a abrigar-se, que a copa das árvores mexesse violentamente com o vento, cada uma para cada lado ao mesmo tempo, que ficasse tudo enlameado, o rio subisse devagarinho e por fim o céu ficasse claro, limpo, radioso. Depois as pessoas voltariam, a falar umas com as outras e finalmente o moinho moeria. Enquanto crescia, isto foi assim.
Mais tarde, já depois da desilusão das coisas maravilhosas* nunca acontecerem, percebi que tinham todas acontecido. E quando vi um Van Gogh ao vivo pela primeira vez lembrei-me do meu quadro. Só que era como se fosse eu o meu quadro e ele me estivesse a ver a mim. Mas isso já são outros tantos.
*(E só muito mais tarde, percebi que todas as coisas que eu achava maravilhosas, extraordinárias, mágicas, eram o quotidiano).
Isto - o quadro - intrigava-me. Não percebia bem o que era. Não sabia bem o que pensar dele. Um dia comecei-me a sentar à frente dele, na parede oposta, no chão, e ficava a olhar. Fazia isto dia após dia. Comecei a achar que o quadro precisava que olhassem para ele. Que se eu não olhasse para ele, ele não existia. Que para ele começar a existir, eu tinha de lhe dedicar o meu tempo e a minha atenção.
Às vezes ficava só a olhar para uma coisa, por exemplo, para a mulher que leva a criança pela mão ou para o barco que sai ou que chega ou para o moinho ou para o reflexo das árvores na água ou para a água ou para a ladeira ou para o buraco ao lado da ladeira (e ali começará uma ponte?) ou para a luz ou para a água, etc. Sei exactamente para onde olhei durante mais tempo, que foi para aquele céu a aparecer negro. Durante muito tempo esperei que acontecessem coisas maravilhosas: que aquilo tudo ganhasse vida e de repente chovesse, que as pessoas fugissem para casa a abrigar-se, que a copa das árvores mexesse violentamente com o vento, cada uma para cada lado ao mesmo tempo, que ficasse tudo enlameado, o rio subisse devagarinho e por fim o céu ficasse claro, limpo, radioso. Depois as pessoas voltariam, a falar umas com as outras e finalmente o moinho moeria. Enquanto crescia, isto foi assim.
Mais tarde, já depois da desilusão das coisas maravilhosas* nunca acontecerem, percebi que tinham todas acontecido. E quando vi um Van Gogh ao vivo pela primeira vez lembrei-me do meu quadro. Só que era como se fosse eu o meu quadro e ele me estivesse a ver a mim. Mas isso já são outros tantos.
*(E só muito mais tarde, percebi que todas as coisas que eu achava maravilhosas, extraordinárias, mágicas, eram o quotidiano).
15 de julho de 2013
10 de julho de 2013
10 de junho de 2013
Acho bem que se veja o Harry Potter e o Chris
de Marker logo a seguir e se veja pornografia e se coma torrão de
alicante e farturas e se vá à feira do livro e se esteja todo o dia no Facebook a perder tempo e se mande os filhos para os avós e se jogue wee
com os filhos e se descubra que afinal o nosso destino de sonho não é a
Nova Zelândia mas sim os Vales secos de McMurdo e se perca a cabeça com
uma coisa simples porque isso é que é o amor e se invente uma palavra e
se fume como um parvo e se pegue no carro para fugir e se desligue a
televisão e se diga palavrões ao Aníbal na televisão e se tomem banhos
de imersão de 4 horas e me convidem que eu não tenho banheira. E acho
mal de toda a gente que disser mal.
Em frente à estação de Santo Amaro de Oeiras,
encontro o café «Carioca's». As duas mesas da esplanada estão ocupadas
respectivamente por duas mulheres a fazer manicure uma à outra (o cheiro
do verniz chega à estrada) e por um grupo de mulheres que descansam as
pernas em cima das pernas umas das outras. Entro e o deslumbre
completa-se: em todas as prateleiras só há copos de cerveja e cerveja.
Salva-se uma prateleira dentro da vitrina que tem bolo de frango, bolo
de carne, bolo de galinha e bolo de
queijo. A prateleira abaixo dessa tem copos, muitos copos e canecas, no
frio claro, como é que ninguém tinha pensado nisso antes. As pessoas
tratam-me como se eu fosse a rainha de Calcutá, não só o casal que me
atende ao balcão mas também aquelas com quem me cruzo até chegar ao
balcão. A música que se ouve é um chorinho sertanejo seguido de um
chorinho sertanejo, se é que eu sei o que é um chorinho sertanejo mas na
parede há um quadro com a letra da música da Adriana Calcanhoto. Na
estação não se ouve uma mosca.
24 de maio de 2013
Encontro no Facebook uma fotografia que é para mim uma representação
do horror, como algumas que conhecemos do Holocausto, de outras guerras e
genocídios e de micro acontecimentos que se tornaram macro imagens
através da comunicação social e da internet. Trata-se de uma imagem que
chocou o mundo há alguns anos, quando os timorenses lutavam pela sua
independência. Eu estava em França, e portanto afastada das lutas
solidárias que se desenvolveram em Portugal, até à libertação. Procurava
notícias nos jornais como quem procura água no deserto. Vi-a numa
revista técnica de fotografia, fazia parte de uma reportagem de páginas
centrais. Penso que nessa noite não consegui dormir ou não consegui
dormir bem. Com a revista na mão sem o intuito de a comprar, li o
pequeno texto que pairava ao lado da imagem e levei-a na garganta
tentando acreditar. Uma pessoa trincava uma perna humana na parte da
tíbia, segurando o pé acima da cabeça. O pequeno texto identificava a
perna como tendo pertencido a um timorense e a pessoa que a trincava
como pertencente às milícias armadas indonésias. Os guerreiros desciam
às aldeias vindos da montanha armados com catanas e depois da matança,
guardavam partes de corpos como amuleto ou como troféu. O contexto sendo
inimaginável, para mim tratava-se de uma imagem transformadora. O
possível tornou-se nesse dia, e nessa noite, uma escolha. Volto a
vê-la hoje, catorze anos depois, numa página no Facebook como capa de
um CD. Há qualquer coisa de puro (esse nome só como dizia a Duras) no
facto de estar a envelhecer.
25 de abril de 2013
Acho bem que se dance muito no dia 25. E que
se vá à praia. Que se passeie nos jardins e se convide a pessoa que
desde a Primavera passada se queria convidar. Que se leia a tarde
inteira com o telemóvel desligado. Que se almoce com a família. Que se
passe o dia entre filmes e sesta. Que se vá ao cinema. Que se vá ao
teatro. Que se saia com uns amigos para comer caracóis e beber jolas.
Que se faça meditação a tarde inteira. Que se penteie os gatos e se mime
os gatos e se brinque com os gatos. Que se passeiem os cães à
beira-rio. Que se passeiem os cágados. Que se desenhe, que se escreva,
que se oiça música, que se compre música que se faça música. Que alguém
me ofereça um cartaz destes. Acho bem que se faça amor da madrugada à
noite do dia 25. E acho mal de toda a gente que disser mal.
23 de abril de 2013
15 de abril de 2013
Abandonei a festa como se fugisse de um lugar assolado pela doença e pela morte. Uma obscuridade deformava monstruosamente a linguagem, os rostos e os gestos. Havia medo. Havia ganância, futilidade, mentira, ilusão, uma miséria intolerável como um pesadelo. Sono, delírio, a gestação de crimes profanos. Saí para respirar mas durante algum tempo o ar pareceu-me pútrido como o ar da cama onde transpirámos com febre, a cama que nos foi estranha ao regressar desses pesadelos. Como num delírio febril, residia a suspeita, ou a intuição, de que a pestilência invadia a vigília e vigiava.
Mais tarde, já a caminho de casa, senti-me devolvida a um tempo adolescente, onde a dor e a carne florescem. Esse vasto território onde a luz é permanentemente arrancada à sombra.
Mais tarde, já a caminho de casa, senti-me devolvida a um tempo adolescente, onde a dor e a carne florescem. Esse vasto território onde a luz é permanentemente arrancada à sombra.
21 de março de 2013
26 de outubro de 2012
A caminho de casa vejo sentado na paragem do autocarro um
homem com um fato completo, muito engomado. Tem a camisa aberta dois ou três botões, o cabelo encaracolado puxado para trás, os olhos grandes, maiores que o rosto, muitos sinais pequenos como a minha mãe e é moreno como um cabrita. Encurvado, segura um pequeno pacote de papel nas mãos, de onde tira castanhas ainda a fumegar. Chego à paragem e depois de fumar um cigarro, sento-me ao seu lado e desejo uma daquelas castanhas. Ele oferece-me uma, eu estou sem grande surpresa. Qualquer coisa neste homem me parecia familiar, como se tivéssemos marcado ali encontro, neste dia e a esta hora.
Enquanto descasco a castanha, digo-lhe para agradecer e porque é verdade: «É a primeira que vou comer este ano! Parece estar bem assada.» Ele sorri, confirma a veracidade do que acabo de dizer e imediatamente prolonga a conversa com um convite para jantar. Recuso o mais delicadamente possível, dizendo que vou ao cinema, o que é verdade. Então ele começa a falar sobre cinema, ou melhor, sobre cinemas.
Diz primeiro que ao que parece, «esse acontecimento que anda aí com muitos filmes, que passa depois da televisão» está a ter muito sucesso. «O DocLisboa?», pergunto, «Isso mesmo!», responde sorrindo. Depois fala dos cinemas onde costumava ir em Lisboa. A lista é infindável. Éden, Odeon, Paris, São Jorge, Alvalade, Quarteto, Cinearte, um que havia no Coliseu, o do Chiado(-Terrasse), o Império, o Monumental e mais. Estou impressionada, e digo-lho, com a quantidade de salas de cinema que havia em Lisboa. Ele responde, naturalmente, que a televisão veio alterar tudo. Vejo-o olhar para a frente e hesitar brevemente antes de me segredar: «Aqui que ninguém nos ouve, eu até chegava a ir aos Piolhos». «Os Piolhos? O que eram os Piolhos?», pergunto, imaginando já a resposta. «O Piolho era ali no Olympia! E havia outro lá em baixo, no Martim Moniz!» Olhos nos olhos, bem abertos, largamos os dois a rir. Quando olhávamos um para o outro riamos mais alto. Um outro homem na paragem olhava para nós com um ar desconfiado. O homem das castanhas diz-me baixinho: «As sessões eram contínuas...!» E voltamos a rir antes de ficarmos os dois em silêncio a olhar para a frente, a pairar.
Enquanto descasco a castanha, digo-lhe para agradecer e porque é verdade: «É a primeira que vou comer este ano! Parece estar bem assada.» Ele sorri, confirma a veracidade do que acabo de dizer e imediatamente prolonga a conversa com um convite para jantar. Recuso o mais delicadamente possível, dizendo que vou ao cinema, o que é verdade. Então ele começa a falar sobre cinema, ou melhor, sobre cinemas.
Diz primeiro que ao que parece, «esse acontecimento que anda aí com muitos filmes, que passa depois da televisão» está a ter muito sucesso. «O DocLisboa?», pergunto, «Isso mesmo!», responde sorrindo. Depois fala dos cinemas onde costumava ir em Lisboa. A lista é infindável. Éden, Odeon, Paris, São Jorge, Alvalade, Quarteto, Cinearte, um que havia no Coliseu, o do Chiado(-Terrasse), o Império, o Monumental e mais. Estou impressionada, e digo-lho, com a quantidade de salas de cinema que havia em Lisboa. Ele responde, naturalmente, que a televisão veio alterar tudo. Vejo-o olhar para a frente e hesitar brevemente antes de me segredar: «Aqui que ninguém nos ouve, eu até chegava a ir aos Piolhos». «Os Piolhos? O que eram os Piolhos?», pergunto, imaginando já a resposta. «O Piolho era ali no Olympia! E havia outro lá em baixo, no Martim Moniz!» Olhos nos olhos, bem abertos, largamos os dois a rir. Quando olhávamos um para o outro riamos mais alto. Um outro homem na paragem olhava para nós com um ar desconfiado. O homem das castanhas diz-me baixinho: «As sessões eram contínuas...!» E voltamos a rir antes de ficarmos os dois em silêncio a olhar para a frente, a pairar.
28 de agosto de 2012
7 de julho de 2012
Mais ou menos por esta altura em Torres Novas, haverá no ar um cheiro a figos tão pesado, tão doce, que se tem a tentação de respirar fundo à procura de ar fresco. Antigamente viam-se pessoas nos telhados, curvadas pela cintura; espalhavam os figos numas esteiras de funcho, junco ou mesmo de madeira para secar ao sol. Os gatos escondiam-se.
Agora as estações mudaram mas nessa altura, em apenas alguns dias a chuva vinha apagá-lo para só voltar a dar tréguas no verão de São Martinho. Quando caía sem se fazer anunciar, as pessoas corriam aos telhados para apanhar os figos e os vizinhos vinham à janela. Eu pelo menos vinha.
Mais ou menos por esta altura em Torres Novas, eu e a minha irmã íamos apanhar figos. Começávamos a espreitar as árvores pelo fim de Junho. Era crime arrancar um que fosse da árvore antes de estarem maduros mas eu cometia esse crime por vezes e com um prazer extraordinário observava o leite escorrer do caule. As mãos ficavam cheias de uma espécie de resina pouco convidativa ao olfacto e difícil de tirar.
E depois um dia saíamos. Se tínhamos a sorte de encontrar uma figueira de beira de estrada carregada, já não a largávamos. Abrigávamo-nos do calor e comíamos até encher a barriga. Muitas vezes até doer a barriga. Mas isso era raro. Normalmente tínhamos de sair dos limites da cidade e entrar nos campos, para procurar uma árvore a apanhá-los às escondidas. A minha irmã ficava com feridas na boca, portanto tínhamos de os comer depressa, para depois correr para casa a lavar a ferida que doía. Se demorássemos demasiado tempo, a ferida alastrava a cortar os cantos da boca e a dor prolongar-se-ia pela semana inteira, sendo difícil comer e mesmo falar. Também me acontecia a mim ter feridas mas só quando os figos eram tão doces que até a casca comíamos. Mesmo assim a minha irmã nunca demorava mais de um segundo a responder afirmativamente ao meu convite e a colocar-se imediatamente em marcha.
Portanto primeiro apanhávamos os que conseguíamos, todos os que podíamos alcançar com a mão, pois os figos maduros não se podem fazer cair do ramo, para depois comer tudo de uma vez. Às vezes as árvores eram boas de subir, apenas um tronco podia levar-nos até ao cimo da copa em segurança. Tínhamos preferência pelos brancos, mais raros naquela zona e em segundo lugar os pretos, que normalmente eram mais pequenos. E vigiávamos em torno, o coração a bater como folk, porque os figos não nos pertenciam. Era no entanto uma ideia muito particular de posse. Quem nos ensinou a apanhar figos foi o meu pai. Levou-nos ao campo, disse-nos como os devíamos colher e avisou-nos que tivéssemos cuidado para não sermos apanhadas. Mas um dia ou outro pelo meio dessa aprendizagem acontecia encontrarmos o dono do figueiral, que às vezes era conhecido do meu pai e tratado pelo primeiro nome mas noutras alturas era um Amigo. Ao Amigo mostrava-se o que se levava na mão, explicava-se o que estávamos ali a fazer. O Amigo sorria e depois todos seguíamos caminho. Eu tinha percebido que havia que ter parcimónia no roubo e por isso nas nossas incursões a minha irmã e eu limitávamo-nos a uma árvore. Mas não conseguia deixar de ir para casa a questionar que se todos fizéssemos o mesmo, os Amigos seriam despojados. Era o imperativo categórico kantiano a formular-se em mim que eu via no entanto como um preconceito da moral cristã a impor-se sobre a experiência que o meu pai tinha do mundo. Claro que não me passava pela cabeça que pudesse haver no mundo inteiro alguém que não gostasse de figos. O mundo onde se apanhavam figos nos campos e se subia aos telhados, que eu queria avidamente descobrir.
Quando regressávamos a casa, a minha mãe perguntava em tom alto com as mãos nas ancas «Vocês andaram aos figos?». Nós abanávamos a cabeça para o lado energicamente. Depois íamos cuidar das feridas na boca da minha irmã.
Agora as estações mudaram mas nessa altura, em apenas alguns dias a chuva vinha apagá-lo para só voltar a dar tréguas no verão de São Martinho. Quando caía sem se fazer anunciar, as pessoas corriam aos telhados para apanhar os figos e os vizinhos vinham à janela. Eu pelo menos vinha.
Mais ou menos por esta altura em Torres Novas, eu e a minha irmã íamos apanhar figos. Começávamos a espreitar as árvores pelo fim de Junho. Era crime arrancar um que fosse da árvore antes de estarem maduros mas eu cometia esse crime por vezes e com um prazer extraordinário observava o leite escorrer do caule. As mãos ficavam cheias de uma espécie de resina pouco convidativa ao olfacto e difícil de tirar.
E depois um dia saíamos. Se tínhamos a sorte de encontrar uma figueira de beira de estrada carregada, já não a largávamos. Abrigávamo-nos do calor e comíamos até encher a barriga. Muitas vezes até doer a barriga. Mas isso era raro. Normalmente tínhamos de sair dos limites da cidade e entrar nos campos, para procurar uma árvore a apanhá-los às escondidas. A minha irmã ficava com feridas na boca, portanto tínhamos de os comer depressa, para depois correr para casa a lavar a ferida que doía. Se demorássemos demasiado tempo, a ferida alastrava a cortar os cantos da boca e a dor prolongar-se-ia pela semana inteira, sendo difícil comer e mesmo falar. Também me acontecia a mim ter feridas mas só quando os figos eram tão doces que até a casca comíamos. Mesmo assim a minha irmã nunca demorava mais de um segundo a responder afirmativamente ao meu convite e a colocar-se imediatamente em marcha.
Portanto primeiro apanhávamos os que conseguíamos, todos os que podíamos alcançar com a mão, pois os figos maduros não se podem fazer cair do ramo, para depois comer tudo de uma vez. Às vezes as árvores eram boas de subir, apenas um tronco podia levar-nos até ao cimo da copa em segurança. Tínhamos preferência pelos brancos, mais raros naquela zona e em segundo lugar os pretos, que normalmente eram mais pequenos. E vigiávamos em torno, o coração a bater como folk, porque os figos não nos pertenciam. Era no entanto uma ideia muito particular de posse. Quem nos ensinou a apanhar figos foi o meu pai. Levou-nos ao campo, disse-nos como os devíamos colher e avisou-nos que tivéssemos cuidado para não sermos apanhadas. Mas um dia ou outro pelo meio dessa aprendizagem acontecia encontrarmos o dono do figueiral, que às vezes era conhecido do meu pai e tratado pelo primeiro nome mas noutras alturas era um Amigo. Ao Amigo mostrava-se o que se levava na mão, explicava-se o que estávamos ali a fazer. O Amigo sorria e depois todos seguíamos caminho. Eu tinha percebido que havia que ter parcimónia no roubo e por isso nas nossas incursões a minha irmã e eu limitávamo-nos a uma árvore. Mas não conseguia deixar de ir para casa a questionar que se todos fizéssemos o mesmo, os Amigos seriam despojados. Era o imperativo categórico kantiano a formular-se em mim que eu via no entanto como um preconceito da moral cristã a impor-se sobre a experiência que o meu pai tinha do mundo. Claro que não me passava pela cabeça que pudesse haver no mundo inteiro alguém que não gostasse de figos. O mundo onde se apanhavam figos nos campos e se subia aos telhados, que eu queria avidamente descobrir.
Quando regressávamos a casa, a minha mãe perguntava em tom alto com as mãos nas ancas «Vocês andaram aos figos?». Nós abanávamos a cabeça para o lado energicamente. Depois íamos cuidar das feridas na boca da minha irmã.
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