Mais ou menos por esta altura em Torres Novas, haverá no ar um cheiro a figos tão pesado, tão doce, que se tem a tentação de respirar fundo à procura de ar fresco. Antigamente viam-se pessoas nos telhados, curvadas pela cintura; espalhavam os figos numas esteiras de funcho, junco ou mesmo de madeira para secar ao sol. Os gatos escondiam-se.
Agora as estações mudaram mas nessa altura, em apenas alguns dias a chuva vinha apagá-lo para só voltar a dar tréguas no verão de São Martinho. Quando caía sem se fazer anunciar, as pessoas corriam aos telhados para apanhar os figos e os vizinhos vinham à janela. Eu pelo menos vinha.
Mais ou menos por esta altura em Torres Novas, eu e a minha irmã íamos apanhar figos. Começávamos a espreitar as árvores pelo fim de Junho. Era crime arrancar um que fosse da árvore antes de estarem maduros mas eu cometia esse crime por vezes e com um prazer extraordinário observava o leite escorrer do caule. As mãos ficavam cheias de uma espécie de resina pouco convidativa ao olfacto e difícil de tirar.
E depois um dia saíamos. Se tínhamos a sorte de encontrar uma figueira de beira de estrada carregada, já não a largávamos. Abrigávamo-nos do calor e comíamos até encher a barriga. Muitas vezes até doer a barriga. Mas isso era raro. Normalmente tínhamos de sair dos limites da cidade e entrar nos campos, para procurar uma árvore a apanhá-los às escondidas. A minha irmã ficava com feridas na boca, portanto tínhamos de os comer depressa, para depois correr para casa a lavar a ferida que doía. Se demorássemos demasiado tempo, a ferida alastrava a cortar os cantos da boca e a dor prolongar-se-ia pela semana inteira, sendo difícil comer e mesmo falar. Também me acontecia a mim ter feridas mas só quando os figos eram tão doces que até a casca comíamos. Mesmo assim a minha irmã nunca demorava mais de um segundo a responder afirmativamente ao meu convite e a colocar-se imediatamente em marcha.
Portanto primeiro apanhávamos os que conseguíamos, todos os que podíamos alcançar com a mão, pois os figos maduros não se podem fazer cair do ramo, para depois comer tudo de uma vez. Às vezes as árvores eram boas de subir, apenas um tronco podia levar-nos até ao cimo da copa em segurança. Tínhamos preferência pelos brancos, mais raros naquela zona e em segundo lugar os pretos, que normalmente eram mais pequenos. E vigiávamos em torno, o coração a bater como folk, porque os figos não nos pertenciam. Era no entanto uma ideia muito particular de posse. Quem nos ensinou a apanhar figos foi o meu pai. Levou-nos ao campo, disse-nos como os devíamos colher e avisou-nos que tivéssemos cuidado para não sermos apanhadas. Mas um dia ou outro pelo meio dessa aprendizagem acontecia encontrarmos o dono do figueiral, que às vezes era conhecido do meu pai e tratado pelo primeiro nome mas noutras alturas era um Amigo. Ao Amigo mostrava-se o que se levava na mão, explicava-se o que estávamos ali a fazer. O Amigo sorria e depois todos seguíamos caminho. Eu tinha percebido que havia que ter parcimónia no roubo e por isso nas nossas incursões a minha irmã e eu limitávamo-nos a uma árvore. Mas não conseguia deixar de ir para casa a questionar que se todos fizéssemos o mesmo, os Amigos seriam despojados. Era o imperativo categórico kantiano a formular-se em mim que eu via no entanto como um preconceito da moral cristã a impor-se sobre a experiência que o meu pai tinha do mundo. Claro que não me passava pela cabeça que pudesse haver no mundo inteiro alguém que não gostasse de figos. O mundo onde se apanhavam figos nos campos e se subia aos telhados, que eu queria avidamente descobrir.
Quando regressávamos a casa, a minha mãe perguntava em tom alto com as mãos nas ancas «Vocês andaram aos figos?». Nós abanávamos a cabeça para o lado energicamente. Depois íamos cuidar das feridas na boca da minha irmã.