Abandonei a festa como se fugisse de um lugar assolado pela doença e pela morte. Uma obscuridade deformava monstruosamente a linguagem, os rostos e os gestos. Havia medo. Havia ganância, futilidade, mentira, ilusão, uma miséria intolerável como um pesadelo. Sono, delírio, a gestação de crimes profanos. Saí para respirar mas durante algum tempo o ar pareceu-me pútrido como o ar da cama onde transpirámos com febre, a cama que nos foi estranha ao regressar desses pesadelos. Como num delírio febril, residia a suspeita, ou a intuição, de que a pestilência invadia a vigília e vigiava.
Mais tarde, já a caminho de casa, senti-me devolvida a um tempo adolescente, onde a dor e a carne florescem. Esse vasto território onde a luz é permanentemente arrancada à sombra.
15 de abril de 2013
21 de março de 2013
26 de outubro de 2012
A caminho de casa vejo sentado na paragem do autocarro um
homem com um fato completo, muito engomado. Tem a camisa aberta dois ou três botões, o cabelo encaracolado puxado para trás, os olhos grandes, maiores que o rosto, muitos sinais pequenos como a minha mãe e é moreno como um cabrita. Encurvado, segura um pequeno pacote de papel nas mãos, de onde tira castanhas ainda a fumegar. Chego à paragem e depois de fumar um cigarro, sento-me ao seu lado e desejo uma daquelas castanhas. Ele oferece-me uma, eu estou sem grande surpresa. Qualquer coisa neste homem me parecia familiar, como se tivéssemos marcado ali encontro, neste dia e a esta hora.
Enquanto descasco a castanha, digo-lhe para agradecer e porque é verdade: «É a primeira que vou comer este ano! Parece estar bem assada.» Ele sorri, confirma a veracidade do que acabo de dizer e imediatamente prolonga a conversa com um convite para jantar. Recuso o mais delicadamente possível, dizendo que vou ao cinema, o que é verdade. Então ele começa a falar sobre cinema, ou melhor, sobre cinemas.
Diz primeiro que ao que parece, «esse acontecimento que anda aí com muitos filmes, que passa depois da televisão» está a ter muito sucesso. «O DocLisboa?», pergunto, «Isso mesmo!», responde sorrindo. Depois fala dos cinemas onde costumava ir em Lisboa. A lista é infindável. Éden, Odeon, Paris, São Jorge, Alvalade, Quarteto, Cinearte, um que havia no Coliseu, o do Chiado(-Terrasse), o Império, o Monumental e mais. Estou impressionada, e digo-lho, com a quantidade de salas de cinema que havia em Lisboa. Ele responde, naturalmente, que a televisão veio alterar tudo. Vejo-o olhar para a frente e hesitar brevemente antes de me segredar: «Aqui que ninguém nos ouve, eu até chegava a ir aos Piolhos». «Os Piolhos? O que eram os Piolhos?», pergunto, imaginando já a resposta. «O Piolho era ali no Olympia! E havia outro lá em baixo, no Martim Moniz!» Olhos nos olhos, bem abertos, largamos os dois a rir. Quando olhávamos um para o outro riamos mais alto. Um outro homem na paragem olhava para nós com um ar desconfiado. O homem das castanhas diz-me baixinho: «As sessões eram contínuas...!» E voltamos a rir antes de ficarmos os dois em silêncio a olhar para a frente, a pairar.
Enquanto descasco a castanha, digo-lhe para agradecer e porque é verdade: «É a primeira que vou comer este ano! Parece estar bem assada.» Ele sorri, confirma a veracidade do que acabo de dizer e imediatamente prolonga a conversa com um convite para jantar. Recuso o mais delicadamente possível, dizendo que vou ao cinema, o que é verdade. Então ele começa a falar sobre cinema, ou melhor, sobre cinemas.
Diz primeiro que ao que parece, «esse acontecimento que anda aí com muitos filmes, que passa depois da televisão» está a ter muito sucesso. «O DocLisboa?», pergunto, «Isso mesmo!», responde sorrindo. Depois fala dos cinemas onde costumava ir em Lisboa. A lista é infindável. Éden, Odeon, Paris, São Jorge, Alvalade, Quarteto, Cinearte, um que havia no Coliseu, o do Chiado(-Terrasse), o Império, o Monumental e mais. Estou impressionada, e digo-lho, com a quantidade de salas de cinema que havia em Lisboa. Ele responde, naturalmente, que a televisão veio alterar tudo. Vejo-o olhar para a frente e hesitar brevemente antes de me segredar: «Aqui que ninguém nos ouve, eu até chegava a ir aos Piolhos». «Os Piolhos? O que eram os Piolhos?», pergunto, imaginando já a resposta. «O Piolho era ali no Olympia! E havia outro lá em baixo, no Martim Moniz!» Olhos nos olhos, bem abertos, largamos os dois a rir. Quando olhávamos um para o outro riamos mais alto. Um outro homem na paragem olhava para nós com um ar desconfiado. O homem das castanhas diz-me baixinho: «As sessões eram contínuas...!» E voltamos a rir antes de ficarmos os dois em silêncio a olhar para a frente, a pairar.
28 de agosto de 2012
7 de julho de 2012
Mais ou menos por esta altura em Torres Novas, haverá no ar um cheiro a figos tão pesado, tão doce, que se tem a tentação de respirar fundo à procura de ar fresco. Antigamente viam-se pessoas nos telhados, curvadas pela cintura; espalhavam os figos numas esteiras de funcho, junco ou mesmo de madeira para secar ao sol. Os gatos escondiam-se.
Agora as estações mudaram mas nessa altura, em apenas alguns dias a chuva vinha apagá-lo para só voltar a dar tréguas no verão de São Martinho. Quando caía sem se fazer anunciar, as pessoas corriam aos telhados para apanhar os figos e os vizinhos vinham à janela. Eu pelo menos vinha.
Mais ou menos por esta altura em Torres Novas, eu e a minha irmã íamos apanhar figos. Começávamos a espreitar as árvores pelo fim de Junho. Era crime arrancar um que fosse da árvore antes de estarem maduros mas eu cometia esse crime por vezes e com um prazer extraordinário observava o leite escorrer do caule. As mãos ficavam cheias de uma espécie de resina pouco convidativa ao olfacto e difícil de tirar.
E depois um dia saíamos. Se tínhamos a sorte de encontrar uma figueira de beira de estrada carregada, já não a largávamos. Abrigávamo-nos do calor e comíamos até encher a barriga. Muitas vezes até doer a barriga. Mas isso era raro. Normalmente tínhamos de sair dos limites da cidade e entrar nos campos, para procurar uma árvore a apanhá-los às escondidas. A minha irmã ficava com feridas na boca, portanto tínhamos de os comer depressa, para depois correr para casa a lavar a ferida que doía. Se demorássemos demasiado tempo, a ferida alastrava a cortar os cantos da boca e a dor prolongar-se-ia pela semana inteira, sendo difícil comer e mesmo falar. Também me acontecia a mim ter feridas mas só quando os figos eram tão doces que até a casca comíamos. Mesmo assim a minha irmã nunca demorava mais de um segundo a responder afirmativamente ao meu convite e a colocar-se imediatamente em marcha.
Portanto primeiro apanhávamos os que conseguíamos, todos os que podíamos alcançar com a mão, pois os figos maduros não se podem fazer cair do ramo, para depois comer tudo de uma vez. Às vezes as árvores eram boas de subir, apenas um tronco podia levar-nos até ao cimo da copa em segurança. Tínhamos preferência pelos brancos, mais raros naquela zona e em segundo lugar os pretos, que normalmente eram mais pequenos. E vigiávamos em torno, o coração a bater como folk, porque os figos não nos pertenciam. Era no entanto uma ideia muito particular de posse. Quem nos ensinou a apanhar figos foi o meu pai. Levou-nos ao campo, disse-nos como os devíamos colher e avisou-nos que tivéssemos cuidado para não sermos apanhadas. Mas um dia ou outro pelo meio dessa aprendizagem acontecia encontrarmos o dono do figueiral, que às vezes era conhecido do meu pai e tratado pelo primeiro nome mas noutras alturas era um Amigo. Ao Amigo mostrava-se o que se levava na mão, explicava-se o que estávamos ali a fazer. O Amigo sorria e depois todos seguíamos caminho. Eu tinha percebido que havia que ter parcimónia no roubo e por isso nas nossas incursões a minha irmã e eu limitávamo-nos a uma árvore. Mas não conseguia deixar de ir para casa a questionar que se todos fizéssemos o mesmo, os Amigos seriam despojados. Era o imperativo categórico kantiano a formular-se em mim que eu via no entanto como um preconceito da moral cristã a impor-se sobre a experiência que o meu pai tinha do mundo. Claro que não me passava pela cabeça que pudesse haver no mundo inteiro alguém que não gostasse de figos. O mundo onde se apanhavam figos nos campos e se subia aos telhados, que eu queria avidamente descobrir.
Quando regressávamos a casa, a minha mãe perguntava em tom alto com as mãos nas ancas «Vocês andaram aos figos?». Nós abanávamos a cabeça para o lado energicamente. Depois íamos cuidar das feridas na boca da minha irmã.
Agora as estações mudaram mas nessa altura, em apenas alguns dias a chuva vinha apagá-lo para só voltar a dar tréguas no verão de São Martinho. Quando caía sem se fazer anunciar, as pessoas corriam aos telhados para apanhar os figos e os vizinhos vinham à janela. Eu pelo menos vinha.
Mais ou menos por esta altura em Torres Novas, eu e a minha irmã íamos apanhar figos. Começávamos a espreitar as árvores pelo fim de Junho. Era crime arrancar um que fosse da árvore antes de estarem maduros mas eu cometia esse crime por vezes e com um prazer extraordinário observava o leite escorrer do caule. As mãos ficavam cheias de uma espécie de resina pouco convidativa ao olfacto e difícil de tirar.
E depois um dia saíamos. Se tínhamos a sorte de encontrar uma figueira de beira de estrada carregada, já não a largávamos. Abrigávamo-nos do calor e comíamos até encher a barriga. Muitas vezes até doer a barriga. Mas isso era raro. Normalmente tínhamos de sair dos limites da cidade e entrar nos campos, para procurar uma árvore a apanhá-los às escondidas. A minha irmã ficava com feridas na boca, portanto tínhamos de os comer depressa, para depois correr para casa a lavar a ferida que doía. Se demorássemos demasiado tempo, a ferida alastrava a cortar os cantos da boca e a dor prolongar-se-ia pela semana inteira, sendo difícil comer e mesmo falar. Também me acontecia a mim ter feridas mas só quando os figos eram tão doces que até a casca comíamos. Mesmo assim a minha irmã nunca demorava mais de um segundo a responder afirmativamente ao meu convite e a colocar-se imediatamente em marcha.
Portanto primeiro apanhávamos os que conseguíamos, todos os que podíamos alcançar com a mão, pois os figos maduros não se podem fazer cair do ramo, para depois comer tudo de uma vez. Às vezes as árvores eram boas de subir, apenas um tronco podia levar-nos até ao cimo da copa em segurança. Tínhamos preferência pelos brancos, mais raros naquela zona e em segundo lugar os pretos, que normalmente eram mais pequenos. E vigiávamos em torno, o coração a bater como folk, porque os figos não nos pertenciam. Era no entanto uma ideia muito particular de posse. Quem nos ensinou a apanhar figos foi o meu pai. Levou-nos ao campo, disse-nos como os devíamos colher e avisou-nos que tivéssemos cuidado para não sermos apanhadas. Mas um dia ou outro pelo meio dessa aprendizagem acontecia encontrarmos o dono do figueiral, que às vezes era conhecido do meu pai e tratado pelo primeiro nome mas noutras alturas era um Amigo. Ao Amigo mostrava-se o que se levava na mão, explicava-se o que estávamos ali a fazer. O Amigo sorria e depois todos seguíamos caminho. Eu tinha percebido que havia que ter parcimónia no roubo e por isso nas nossas incursões a minha irmã e eu limitávamo-nos a uma árvore. Mas não conseguia deixar de ir para casa a questionar que se todos fizéssemos o mesmo, os Amigos seriam despojados. Era o imperativo categórico kantiano a formular-se em mim que eu via no entanto como um preconceito da moral cristã a impor-se sobre a experiência que o meu pai tinha do mundo. Claro que não me passava pela cabeça que pudesse haver no mundo inteiro alguém que não gostasse de figos. O mundo onde se apanhavam figos nos campos e se subia aos telhados, que eu queria avidamente descobrir.
Quando regressávamos a casa, a minha mãe perguntava em tom alto com as mãos nas ancas «Vocês andaram aos figos?». Nós abanávamos a cabeça para o lado energicamente. Depois íamos cuidar das feridas na boca da minha irmã.
28 de maio de 2012
13 de maio de 2012
As primeiras imagens são sempre da infância. Eu percorria um caminho
de terra, com árvores e trepadeiras a tapar o céu. Do outro lado do
caminho ficava a estrada, o alcatrão sem princípio nem fim, nenhuma
árvore, todo o perigo do mundo. Atravessava o caminho de bicicleta e
assim que entrava não ouvia mais nada a não ser o palpitar do meu
coração, o latejar do calor sobre a minha pele e o vento investindo nas
folhas, levantando o pó. Ou então eram as minhas mãos enterrarem-se na
terra e o tempo a ver as formigas carregarem coisas para dentro de um
buraco. Havia um pinheiro, tão grande que teve de nascer muito longe
para poder crescer tanto e à sombra do qual nós fazíamos piqueniques e
comíamos pinhões uma vez por ano. No caminho havia marmelos e amoras; os
marmelos não se apanhavam, as amoras comiam-se quentes.
O espaço do mundo com que o meu corpo entrava em contacto era voraz, enigmático, um pouco frio. Ficava a ler atrás das portas e evitava o contacto humano. A minha irmã protegia-me. Durante muito tempo senti que era a única pessoa a proteger-me (de alguma coisa). Éramos duas cabeças que pensavam a uma voz. A paisagem da Serra diante da casa da minha avó. Os dedos da minha avó, redondos e macios, a afastarem-me os cabelos ao sol para matar os piolhos. Uma casa muito limpa ainda assim um labirinto que eu percorria com a minha irmã. A Serra a arder todo o dia e toda a noite. As cigarras que não me deixavam dormir e me faziam sentir muito só. Um sapato perdido a caminho de casa sem que eu soubesse explicar como.
Estas imagens da infância, o que são? Não dizem nada, não trazem nenhuma história com elas, nenhuma poesia. Imagens dilacerantes e perfeitas, imagens que são o que são.
Mas de onde vem esse vazio que as cristalizou? O que me importa saber: trata-se de um vazio que se formou através delas ou um vazio que já existia antes delas próprias de formarem? Não procuro a resposta psicológica que corresponde sem excepção ao pai e à mãe nem tão pouco, muito embora sejam memórias, à que procura desconstruir e sublimar uma identidade pessoal. Eu pergunto sobre o espaço puro que elas ocupam. Porque estas imagens constituem uma geometria pessoal mais profunda do que todo o conjunto de todas as minhas vivências: para lá de todas as outras, são as imagens que estão no início da escrita. Que por ela se erguem e a convocam, insistentemente, como os olhos de um gato, que te vê, quando estás perdido à noite. A mim regressam em todos os princípios, como cenários de uma guerra surda de onde terei de me subtrair.
O espaço do mundo com que o meu corpo entrava em contacto era voraz, enigmático, um pouco frio. Ficava a ler atrás das portas e evitava o contacto humano. A minha irmã protegia-me. Durante muito tempo senti que era a única pessoa a proteger-me (de alguma coisa). Éramos duas cabeças que pensavam a uma voz. A paisagem da Serra diante da casa da minha avó. Os dedos da minha avó, redondos e macios, a afastarem-me os cabelos ao sol para matar os piolhos. Uma casa muito limpa ainda assim um labirinto que eu percorria com a minha irmã. A Serra a arder todo o dia e toda a noite. As cigarras que não me deixavam dormir e me faziam sentir muito só. Um sapato perdido a caminho de casa sem que eu soubesse explicar como.
Estas imagens da infância, o que são? Não dizem nada, não trazem nenhuma história com elas, nenhuma poesia. Imagens dilacerantes e perfeitas, imagens que são o que são.
Mas de onde vem esse vazio que as cristalizou? O que me importa saber: trata-se de um vazio que se formou através delas ou um vazio que já existia antes delas próprias de formarem? Não procuro a resposta psicológica que corresponde sem excepção ao pai e à mãe nem tão pouco, muito embora sejam memórias, à que procura desconstruir e sublimar uma identidade pessoal. Eu pergunto sobre o espaço puro que elas ocupam. Porque estas imagens constituem uma geometria pessoal mais profunda do que todo o conjunto de todas as minhas vivências: para lá de todas as outras, são as imagens que estão no início da escrita. Que por ela se erguem e a convocam, insistentemente, como os olhos de um gato, que te vê, quando estás perdido à noite. A mim regressam em todos os princípios, como cenários de uma guerra surda de onde terei de me subtrair.
6 de maio de 2012
5 de maio de 2012
Perguntei há dias a um médico porque razão as mortes são sempre em maior número na altura da primavera. Respondeu-me que apesar das inúmeras pesquisas que continuam a ser feitas sobre esse assunto, não existe nenhuma conclusão. Contudo uma das hipóteses apontadas mais frequentemente diz respeito às
mudanças que ocorrem a nível do campo magnético da terra que, entre
outras coisas, serve por exemplo para os animais se orientarem nas suas
migrações. Qualquer coisa muito recalcado no meu cérebro cristão
deve ter feito ricochete, porque a poesia da ideia apaziguou-me
ligeiramente: almas migrando para sítios mais verdejantes, and so on and
so on. O corpo sabe sempre mais do que a razão.
19 de abril de 2012
29 de janeiro de 2012
A primeira coisa que disse quando nasci, ainda nas mãos da parteira foi:
«Mãe quero ir para Lisboa.»
Durante os primeiros 18 anos, Lisboa foi uma palavra
e um objetivo.
Ainda hoje,
o que mais me emociona no Casablanca
é essa palavra.
Lisboa é muito simples.
Os sítios de que gostamos mais vão variando, consoante a distância a que estamos deles.
Eu por exemplo gosto muito de um sítio onde nunca fui.
Um sítio
onde
ainda
nunca fui.
Vivi em quase todos os bairros da cidade.
Gosto dos contrastes de Lisboa.
No verão, o cheiro a laranjas é tão forte que se confunde com o cheiro a alcatrão.
Há uns anos, depois de passar pelo trânsito da Avenida da República e da Praça de Espanha, atravessava Monsanto;
via esquilos atravessar a estrada
e grupos de cavalos entrar no nevoeiro.
Este ano celebro 18 anos de vida em Lisboa.
Tantos quantos os que vivi na cidade onde nasci.
Falo agora dela como se fosse minha, como de uma amante, e esqueço frequentemente que nunca somos totalmente preenchidos pelas coisas que amamos.
Lisboa, janeiro de 2012.
Texto para Drifting/Em Deriva, de Gustavo Ciríaco e António Pedro Lopes.
«Mãe quero ir para Lisboa.»
Durante os primeiros 18 anos, Lisboa foi uma palavra
e um objetivo.
Ainda hoje,
o que mais me emociona no Casablanca
é essa palavra.
Lisboa é muito simples.
Os sítios de que gostamos mais vão variando, consoante a distância a que estamos deles.
Eu por exemplo gosto muito de um sítio onde nunca fui.
Um sítio
onde
ainda
nunca fui.
Vivi em quase todos os bairros da cidade.
Gosto dos contrastes de Lisboa.
No verão, o cheiro a laranjas é tão forte que se confunde com o cheiro a alcatrão.
Há uns anos, depois de passar pelo trânsito da Avenida da República e da Praça de Espanha, atravessava Monsanto;
via esquilos atravessar a estrada
e grupos de cavalos entrar no nevoeiro.
Este ano celebro 18 anos de vida em Lisboa.
Tantos quantos os que vivi na cidade onde nasci.
Falo agora dela como se fosse minha, como de uma amante, e esqueço frequentemente que nunca somos totalmente preenchidos pelas coisas que amamos.
Lisboa, janeiro de 2012.
Texto para Drifting/Em Deriva, de Gustavo Ciríaco e António Pedro Lopes.
28 de janeiro de 2012
16 de dezembro de 2011
9 de fevereiro de 2011
a colher cai sobre a mesa
uma mancha de água cinzenta alastra na toalha
uma gota aloja-se na minha pele
mergulho
sabe ao mar dos dias
onde viajo numa escuridão insuficiente
intrigada por todas as que sou
falo
pronuncio um só nome para seduzir
desprendida e morta, já morta
mantenho o chá sobre a mesa.
uma mancha de água cinzenta alastra na toalha
uma gota aloja-se na minha pele
mergulho
sabe ao mar dos dias
onde viajo numa escuridão insuficiente
intrigada por todas as que sou
falo
pronuncio um só nome para seduzir
desprendida e morta, já morta
mantenho o chá sobre a mesa.
12 de janeiro de 2011
Uma língua sem linguagem
A vaga assome e eu procuro por toda a parte a forma que cresce em mim e cuja força se estende no espaço muito para além de mim, muito para além da casa, das ruas, da cidade e cria um outro mundo para além do tangível e inteligível. Sou uma vaga de labaredas poderosas que ninguém senão os loucos sabe navegar. Remonto do primeiro mergulho e vejo o meu corpo transformar-se rapidamente nesse animal sedutor que caminha entre os destroços vivos dos poetas, repetidos até à exaustão. Oiço tudo, vejo tudo. A rapidez da vida absorvendo cada instante não-vivido para a morte. Eu não morro, já morri, agora sou apenas o instante, veloz como ela, e em breve não me restará outra língua para além do grito que ninguém poderá ouvir.
A vaga assome e eu procuro por toda a parte a forma que cresce em mim e cuja força se estende no espaço muito para além de mim, muito para além da casa, das ruas, da cidade e cria um outro mundo para além do tangível e inteligível. Sou uma vaga de labaredas poderosas que ninguém senão os loucos sabe navegar. Remonto do primeiro mergulho e vejo o meu corpo transformar-se rapidamente nesse animal sedutor que caminha entre os destroços vivos dos poetas, repetidos até à exaustão. Oiço tudo, vejo tudo. A rapidez da vida absorvendo cada instante não-vivido para a morte. Eu não morro, já morri, agora sou apenas o instante, veloz como ela, e em breve não me restará outra língua para além do grito que ninguém poderá ouvir.
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