As primeiras imagens são sempre da infância. Eu percorria um caminho
de terra, com árvores e trepadeiras a tapar o céu. Do outro lado do
caminho ficava a estrada, o alcatrão sem princípio nem fim, nenhuma
árvore, todo o perigo do mundo. Atravessava o caminho de bicicleta e
assim que entrava não ouvia mais nada a não ser o palpitar do meu
coração, o latejar do calor sobre a minha pele e o vento investindo nas
folhas, levantando o pó. Ou então eram as minhas mãos enterrarem-se na
terra e o tempo a ver as formigas carregarem coisas para dentro de um
buraco. Havia um pinheiro, tão grande que teve de nascer muito longe
para poder crescer tanto e à sombra do qual nós fazíamos piqueniques e
comíamos pinhões uma vez por ano. No caminho havia marmelos e amoras; os
marmelos não se apanhavam, as amoras comiam-se quentes.
O espaço
do mundo com que o meu corpo entrava em contacto era voraz,
enigmático, um pouco frio. Ficava a ler atrás das portas e evitava o
contacto humano. A minha irmã protegia-me. Durante muito tempo senti que
era a única pessoa a proteger-me (de alguma coisa). Éramos duas cabeças
que pensavam a uma voz. A paisagem da Serra diante da casa da minha avó.
Os dedos da minha avó, redondos e macios, a afastarem-me os cabelos ao
sol para matar os piolhos. Uma casa muito limpa ainda assim um labirinto
que eu percorria com a minha irmã. A Serra a arder todo o dia e toda a
noite. As cigarras que não me deixavam dormir e me faziam sentir muito
só. Um sapato perdido a caminho de casa sem que eu soubesse explicar
como.
Estas imagens da infância, o que são? Não dizem nada, não trazem nenhuma
história com elas, nenhuma poesia. Imagens dilacerantes e perfeitas, imagens que são o que são.
Mas
de onde vem esse vazio que as cristalizou? O que me importa saber:
trata-se de um vazio que se formou através delas ou um vazio que já
existia antes delas próprias de formarem? Não procuro a resposta
psicológica que corresponde sem excepção ao pai e à mãe nem tão pouco,
muito embora sejam memórias, à que procura desconstruir e sublimar uma
identidade pessoal. Eu pergunto sobre o espaço puro que elas ocupam.
Porque estas imagens constituem uma geometria pessoal mais profunda do
que todo o conjunto de todas as minhas vivências: para lá de todas as
outras, são as imagens que estão no início da escrita. Que por ela se
erguem e a convocam, insistentemente, como os olhos de um gato, que te
vê, quando estás perdido à noite. A mim regressam em todos os
princípios, como cenários de uma guerra surda de onde terei de me
subtrair.