13 de maio de 2012

As primeiras imagens são sempre da infância. Eu percorria um caminho de terra, com árvores e trepadeiras a tapar o céu. Do outro lado do caminho ficava a estrada, o alcatrão sem princípio nem fim, nenhuma árvore, todo o perigo do mundo. Atravessava o caminho de bicicleta e assim que entrava não ouvia mais nada a não ser o palpitar do meu coração, o latejar do calor sobre a minha pele e o vento investindo nas folhas, levantando o pó. Ou então eram as minhas mãos enterrarem-se na terra e o tempo a ver as formigas carregarem coisas para dentro de um buraco. Havia um pinheiro, tão grande que teve de nascer muito longe para poder crescer tanto e à sombra do qual nós fazíamos piqueniques e comíamos pinhões uma vez por ano. No caminho havia marmelos e amoras; os marmelos não se apanhavam, as amoras comiam-se quentes.
O espaço do mundo com que o meu corpo entrava em contacto era voraz, enigmático, um pouco frio. Ficava a ler atrás das portas e evitava o contacto humano. A minha irmã protegia-me. Durante muito tempo senti que era a única pessoa a proteger-me (de alguma coisa). Éramos duas cabeças que pensavam a uma voz. A paisagem da Serra diante da casa da minha avó. Os dedos da minha avó, redondos e macios, a afastarem-me os cabelos ao sol para matar os piolhos. Uma casa muito limpa ainda assim um labirinto que eu percorria com a minha irmã. A Serra a arder todo o dia e toda a noite. As cigarras que não me deixavam dormir e me faziam sentir muito só. Um sapato perdido a caminho de casa sem que eu soubesse explicar como.
Estas imagens da infância, o que são? Não dizem nada, não trazem nenhuma história com elas, nenhuma poesia. Imagens dilacerantes e perfeitas, imagens que são o que são.
Mas de onde vem esse vazio que as cristalizou? O que me importa saber: trata-se de um vazio que se formou através delas ou um vazio que já existia antes delas próprias de formarem? Não procuro a resposta psicológica que corresponde sem excepção ao pai e à mãe nem tão pouco, muito embora sejam memórias, à que procura desconstruir e sublimar uma identidade pessoal. Eu pergunto sobre o espaço puro que elas ocupam. Porque estas imagens constituem uma geometria pessoal mais profunda do que todo o conjunto de todas as minhas vivências: para lá de todas as outras, são as imagens que estão no início da escrita. Que por ela se erguem e a convocam, insistentemente, como os olhos de um gato, que te vê, quando estás perdido à noite. A mim regressam em todos os princípios, como cenários de uma guerra surda de onde terei de me subtrair.