11 de novembro de 2016
9 de novembro de 2016
7 de novembro de 2016
6 de novembro de 2016
visto anos depois, incompreensível e assustador, o desenho parecia-lhe o resultado de um espírito demente. lembrava-se de o ter feito, depois de uma sesta num fim de tarde de primavera, mas nada mais. quis acreditar que não fora ele realmente a fazer aquilo e não podia. com repulsa, quis deitá-lo fora imediatamente e no entanto hesitava. aliás, não conseguia deixar de o observar. qualquer coisa, porventura o que nele havia de obsessivo e enigmático, deflagrava aos seus olhos como algo obscuramente belo. procurou recordar-se. tinha-o encontrado por acaso entre papéis desarrumados e sabia que era o desenho do que tinha visto num sonho. sabia que o tinha feito, a carvão, mal tinha acordado. mas não se lembrava do sonho e rever os seus elementos transpostos para o papel não o ajudava a lembrar-se. e teria isso ajudado a convencê-lo de que não era louco? a evidência, parecia-lhe, estava diante dos seus olhos, e não podia negá-lo. não sabia, de facto. com fita-cola, afixou o desenho na parede. seria o único assim? a ideia alarmou-o. mais alguém poderia ter visto um desenho daquela época e até tê-lo guardado. podia estar intacto, algures. porém, como a sua inquietação era inconfessável, nunca iria descobrir. nos dias seguintes, o desenho e as suas formas não lhe saíram da cabeça. uma enorme sombra projetava-se de um monólito no centro, sobre o qual estava um espelho com um corredor e uma porta. diversos animais rodeavam a peça central, como que em movimento, e uma mão saía de um deles. apesar de desenhada toscamente, não sabia porquê, essa mão parecia-lhe real, como se pudesse tocá-lo, e era nela que mais refletia. que espécie de loucura teria produzido aquela mão para que fulgurasse no canto de uma folha de papel, olhando-o? que espécie de loucura, enfim, a via olhá-lo? havia muito que a suspeita de que encontrava doente tinha surgido e agora não podia mais recalcar essa dúvida. permanecia secreta, contudo, a doença que o corroía e que, por vezes a muito custo, conseguia ainda esconder. eram sobretudo os pequenos detalhes que mais lhe
causavam esforço. havia de chegar o dia em que deixaria de conseguir esconder-se e a doença tomaria por fim lugar. nos últimos anos tinha adquirido asco pelos espelhos e pensava agora se isso se devia a esse sonho antigo. a imagem que lhe devolviam era demasiado nítida para que pudesse suportá-la. fosse como fosse, dizia-se vários dias depois, mais do que a demência, era a beleza que se manifestava. seria louco talvez, mas entre as ranhuras do mundo ela surgia, pequena, sem valia nem propósito. e ele via.
3 de novembro de 2016
Espinosa,
segundo Alain, mestre da alegria, mostra que «não é porque me aqueço
que estou contente, mas é porque estou contente que me aqueço», isto é,
só há uma maneira de resistir ao frio, é ficar contente que ele venha
(como parece extravagante uma tal compreensão numa época em que tudo o
que ventos, marés, temperaturas nos trazem é submetido às mós dos
pequenos sistemas de finalidades).
Maria Filomena Molder, in Sobre a Alegria.
Maria Filomena Molder, in Sobre a Alegria.
31 de outubro de 2016
"Já ninguém gosta de arte contemporânea. Eu só quero ver Monet.", dizia-me ontem uma amiga. O conceptualismo evoluiu para uma abstração excessiva que só o próprio autor pode decifrar: e ainda assim nada revelar ou acrescentar. Pelo menos no que diz respeito aos artistas portugueses, o pedantismo intelectual sobrepôs-se à atividade criativa, deixando a arte no esgoto, como uma matéria inútil. Passarão muitas dezenas de anos até que volte a aparecer um artista que rompa com o estado de coisas atual, pelo menos no que diz respeito à criação. No que se refere aos comportamentos e, enfim, ao caráter, tenho sérias dúvidas que venha a haver alguma alteração. O caráter das pessoas que trabalham em arte contemporânea em Portugal, define-se pelo mercado.
30 de outubro de 2016
T. vai à varanda e de lá vê o espaço cheio de libélulas que, como um comboio infinito, não param de passar. atónita, fica imóvel, algumas passam perto do seu nariz, outras longe, do outro lado da rua, e entre umas e outras há pouco espaço vazio. passam rapidamente, para onde vão?, pensa, e porque passam pelo meio das ruas da cidade? horas depois, as libélulas continuam ainda o seu périplo. depois de ir à cozinha várias vezes espreitar pela janela para ver se desse lado da casa também vê alguma, T. senta-se na varanda a observá-las. uma urtiga cresce esplendorosamente num vaso e noutro erva, já muito alta. um pequeno verde, uma ilusão de campo, como se fosse o suficiente, pensa. as libélulas não podem escapar à sua viagem para outro continente tal como eu, aqui e agora na minha varanda, não posso escapar à minha solidão. ambas são inexoráveis. depois T. levanta-se, fecha a porta que dá para a varanda e entra em casa. o voo das libélulas resiste, não lá fora perante o seu olhar, mas como recordação. há neste mundo libélulas que, sem hesitação, encontram acordo para se agruparem e atravessar continentes, passando pelo meio das ruas de uma cidade. a alegria e a perfeição dessa recordação ombreava a da sua existência, também ela um périplo silencioso.
28 de outubro de 2016
27 de outubro de 2016
Os puristas detestam ouvir isto e negá-lo-ão mesmo na hora da sua morte, mas é verdade. A linguagem nem sempre tem de usar gravata e sapatos de atacadores. O objecto da ficção não é a correcção gramatical, mas sim acolher bem o leitor e depois contar-lhe uma história... Fazendo-o esquecer-se, sempre que possível, de que está a lê-la.
Stephen King, Escrever.
Stephen King, Escrever.
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