2 de junho de 2016

Isto é... Bom, o que pode existir além disso? Ter uma pequena infância comum, uma infância comum cheia de paixão. Nada. Nada, absolutamente nada pode existir para além disso.

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Já o disse em Hiroshima Mon Amour: o que conta não é a manifestação do desejo, da tentativa amorosa. O que conta é o inferno da história única. Nada a substitui, nem uma segunda história. Nem a mentira. Nada. Quanto mais a provocamos, mais ela foge. Amar é amar alguém. Não há um múltiplo da vida que possa ser vivido. Todas as primeiras histórias de amor se quebram e depois é essa história que transportamos para as outras histórias. Quando se viveu um amor com alguém, fica-se marcado para sempre e depois transporta-se essa história de pessoa a pessoa. Nunca nos separamos dele. Não podemos evitar a unicidade, a fidelidade, como se fôssemos, só nós, o nosso próprio cosmo.

Marguerite Duras

1 de junho de 2016

Emily Dickinson

31 de maio de 2016

Que rudimentares são as nossas emoções.
It has made me better, loving you.

Henry James, The Portrait of a Lady.

30 de maio de 2016

Eu, naquele inverno, estava tomado de furores abstratos. Não direi quais, não é isso que me proponho a contar. Mas é preciso dizer que eram abstratos, nada heróicos, nem vivos; de qualquer maneira, furores pelo gênero humano perdido. Vinha assim há muito tempo, e andava cabisbaixo. Via manchetes nos jornais sensacionalistas e abaixava a cabeça; estava com os amigos, uma hora, duas horas, e ficava com eles sem abrir a boca; abaixava a cabeça; e tinha uma moça ou uma mulher que me esperava, mas nem com ela eu trocava uma palavra, mesmo com ela eu abaixava a cabeça. Chovia o tempo todo, passavam-se os dias, os meses, e eu tinha os sapatos furados, a água me entrando nos sapatos, e não era mais nada que isso: chuva, carnificinas nas manchetes dos jornais, e água nos meus sapatos furados, amigos mudos, a vida em mim como um sonho surdo, e não-esperança, calmaria.
Isso era terrível: a calmaria na não-esperança. Dar o gênero humano como perdido e não ter vontade de fazer coisa alguma quanto a isso, nem vontade de me perder, por exemplo, com ele. Eu estava perturbado por furores abstratos, não no sangue, e ficava quieto, sem vontade de nada.


Elio Vittorini

29 de maio de 2016

26 de maio de 2016

era um corpo estrangeiro
que incomodava.
eu deveria dizer
«não lhe toquem, deixem-no»
mas todos o tinham deixado.

qualquer coisa o impedia
de perdurar como uma bela memória
da infância
pois era cómico
e implorava viver.

usava palavras
cuja origem garantia
a beleza, a graça e a elegância
como as de uma mãe
no quarto da criança.

mas o som chegava
sempre um pouco mais tarde
como um objeto do outro lado
de um longo fio
atado ao dedo.

as mãos — há que dizê-lo —
as mãos mexiam-se sem propósito
e sem impaciência,
ficando presas nas palavras
como numa teia.

e então, o que poderiam fazer?
a foice sibila
soa um tinir de sinos
alguém canta
labaredas crepitam

por isso o corpo gritou
num tom cavernoso
imerso na sombra
e ergueu-se
muito simplesmente.

25 de maio de 2016

debaixo da árvore
de jacarandá
chove cacimba
Eva caminha
sobre o cimento líquido do Éden.
tem o corpo de uma mulher assassinada.
deita fogo aos juncos 
e esfarela o pão azedo
mesmo sem a energia para o fazer
como qualquer sobrevivente
       — e Eva é
intrinsecamente
uma sobrevivente.
um sentimento indigno
apodera-se dela.
quer dizer alguma coisa
sobre isso
e não consegue.
sem olhar para trás,
mas em cólera,
pensa
«a noite cai depressa»
enquanto arranca uma flor amarela.
cabisbaixo,
Adão caminha uns passos atrás,
vê os juncos queimados
o pão esfarelado
a noite opressora
e a flor amarela no chão,
mas neste momento, Adão e Eva são invisíveis.
a imprudência
não os conduziu ainda
nem ao desespero
nem ao otimismo.
passam sobre o cimento líquido como um zumbido
com certa incredulidade
e abrem a porta.