14 de dezembro de 2024

Martha e a morte 

Quando decido ir ao cinema ver um filme, chego de palas. Não leio nada, não quero ver o poster, o trailer, quaisquer imagens, não quero saber quem entra, quanto tempo tem, o que dizem os críticos e o povo. Para uma nefelibata treinada nas artes da distração, não é difícil, e obtenho mesmo certo gozo em, com a maior leviandade possível, passar por cima de alguma crítica que se estuda como à lei. Crítica, sem dúvida, mas depois do filme. Ainda assim, submersa em informação nas redes sociais, de que na maioria dos meses do ano não posso desligar-me por ter de trabalhar com elas, há sempre alguma coisa que levo comigo para a sala. No caso do filme O QUARTO AO LADO, de Pedro Almodóvar, sabia três coisas: havia uma paleta, o filme era sobre a eutanásia e era a primeira vez que estava a filmar com atores americanos. Presumi, a partir daquilo que conheço dos filmes dele, que não seria a perspetiva mais óbvia sobre o tema e, ao mesmo tempo, perguntava-me o que é o óbvio e porque é que nos aflige. O olhar que se torna comum, aquele que subitamente, com entusiasmo ou com fastio, todos parecemos partilhar, está em quê, onde? Almodóvar, disso ninguém duvida, é um grande cineasta. O que é que ele queria contar com esta história se a maior de todas as obviedades é a morte? Era essa a pergunta que emergia enquanto me desviava das imagens. 
Uma mulher assina livros para uma longa fila de fãs numa livraria em Nova Iorque. Ao seu lado, outra mulher, atenta, atenciosa, voluntariosa, vai para o final da fila para impedir que mais fãs se juntem enquanto a escritora termina de assinar livros para os que já lá estão. Tentada pela descrença a ver a cena como um clichê, mantenho-me impassível. A condenação dos clichês soa-me como o sinal de uma fraqueza deplorável que nos enclausura numa experiência do mundo tão soberana quanto isolada. Temos a crítica fácil, em geral. Nunca admirei tanto James Wood como quando, numa entrevista recente, afirmou que se arrependia de ter sido tão implacável nas suas recensões. Que gostaria de ter sido «mais gentil e compreensivo» em vez de «provocar tristeza na vida de alguém». Esta é realmente a verdade por detrás das coisas, qualquer tentativa de o invalidar é um instrumento de repressão. A verdade é que a amabilidade com que estas mulheres se dirigiam uma à outra me impressionava. Não porque essa amabilidade existisse e não a reconhecesse, antes — reparo nisso no momento em que as imagens se sucedem diante do meu corpo —, por ser retribuída entre elas. De certo modo, essa amabilidade é o contraponto da minha distração: o tom por vezes servil e adulador que observamos à superfície, mais nítido que o seu propósito, caía, para se revelar generosidade pura. São coisas demasiado simples, a generosidade, a gentileza, a amabilidade, e tão difíceis de praticar. A cena é apenas uma desculpa para levar esta mulher, que tem medo da morte, ao encontro de alguém que está perante a morte.
Avassaladora, a forma como os planos seguintes estão construídos, com a câmara colada ao rosto das atrizes, agride-me. Em vez de me ver puxada para dentro do ecrã, como normalmente me acontece com os bons filmes, que me absorvem como um vórtice na água, sou brutalmente empurrada para as costas da cadeira. Martha. Estou desconfortável com este nome. Além disso, a história que Martha contava, sobre a sua relação com a filha, tinha começado abruptamente, a seco, sem preâmbulo, sem preliminares, e, apesar das atrizes falarem estranhamente devagar, como se estivessem a explorar a mímica ou a soletrar, apesar, também, de ser uma história banal (adolescentes, sexo, guerra, doença mental, mãe solteira), parecia ao mesmo tempo exigir que fizesse um esforço invulgar para a seguir, que me tornasse talvez, também eu, íntima com elas. E eu não queria ser íntima ainda. Não sem preliminares. Em mim, o filme prossegue aos solavancos, por vezes suaves, por vezes bruscos, quase desajeitadamente, como se não fosse preciso contar a história para contar a história. A história era só uma desculpa. 

MARTHA So you’re going to write about Dora Carrington’s insane love. 
INGRID Mhmm… and her connection to Virginia Woolf, whom Strachey also pursued romantically.
MARTHA What a group! I so admire their freedom. 
INGRID Strachey died of stomach cancer eighteen years after meeting Dora. And Dora survived him by barely two months before she shot herself in the stomach. 
INGRID She was only thirty-eight… 
MARTHA (Pensive) I’m struck by the symmetry of that kind of gesture… His stomach cancer and her shooting herself in the stomach. 
INGRID I know… it struck me too. 
MARTHA Maybe Virginia saw a kind of warning in Carrington’s death, a mirror that reflected her.
INGRID Yes. It's as if the two of them, no matter what happened, were fated. 
MARTHA Do you think I’m fated too? 
INGRID No! Of course not! I’ve never known anyone more alive than you. 

Sinto-me desconfortável. Vista. A morte eminente de Martha é um espelho e pergunto-me se todos os que estão sentados naquela sala gigante, quase cheia, se sentem assim. Certo é que, sem saber como, a intimidade entre mim e elas dá-se. E enquanto ouvimos a história, a beleza e a vida abrigam-nos. São as cores de Hopper, não só cores fortes como cores planas, primárias, cores da experiência da solidão. Toda a narrativa se apoia nelas, cada vez mais depuradas e mais lisas à medida que o fim se aproxima. Aquela que se despede limpa à volta. As casas bonitas, como ele gosta, as casas como uma segunda pele, um órgão expandido que se talha nas memórias, nos objetos que as preenchem, na luz e na obscuridade de que são feitas, e acaba por guardar a referência matriz da nossa existência, essa voz primordial que apenas nós ouvimos e sobre a qual nos debruçamos quando atravessamos corredores, passamos de divisão em divisão, vamos à varanda, espreitamos pela janela ou nos sentamos numa sala vazia. Como uma nave ou um arquivo, as casas têm a dimensão de quem lá mora, e na sua voz resiste um rumor de vida para lá do silêncio que todos os dias nos traz a morte. O crepúsculo banha a paisagem para lá da janela, a cor de uma jarra de flores refulge, neve cor-de-rosa cai, e a aparição prodigiosa das coisas surge, uma ideia, um impulso. 
E de repente, tudo muda. 
Num único plano, do rosto introspetivo de Martha, o filme é transferido para a esfera do inominável. Uma sombra infiltra-se e obscurece inteiramente esse rosto branco e luminoso que vê neve rosa cair e se maravilha enquanto recorda uma passagem de um livro como se só agora a pudesse compreender. A noite chega. A partir daqui, o mais importante não é a morte. A morte é uma evidência que oferece contornos ao vivo. Como numa pintura de Turner, com toda a sua luminosidade e aparente quietude, vemos na natureza uma imagem do que outrora foi e já se desfez. Uma imagem de destruição assoma onde o que vemos erguido, refletindo o seu duplo na água, é uma ruína: não estará lá, não está lá. Aquilo que vemos é já pó. 

A few light taps upon the pane made him turn to the window. It had begun to snow again. He watched sleepily the flakes, silver and dark, falling obliquely against the lamplight. The time had come for him to set out on his journey westward. Yes, the newspapers were right: snow was general all over Ireland. It was falling on every part of the dark central plain, on the treeless hills, falling softly upon the Bog of Allen and, farther westward, softly falling into the dark mutinous Shannon waves. It was falling, too, upon every part of the lonely churchyard on the hill where Michael Furey lay buried. It lay thickly drifted on the crooked crosses and headstones, on the spears of the little gate, on the barren thorns. His soul swooned slowly as he heard the snow falling faintly through the universe and faintly falling, like the descent of their last end, upon all the living and the dead.

The Dead, James Joyce (1914).

A neve de Joyce e a vida, ainda, nos pormenores: os rostos de PERSONA, a fotografia das mulheres de luto, o rosto jovem daquela que vai morrer. O lenço de Louise Bourgeois na parede: «I've been to hell and back. And let me tell you, it was wonderful.» Mas também o Buster Keaton a ser perseguido por uma multidão de mulheres num filme que, apesar de não conhecer, imagino uma multidão a desaprovar. E também: «Vamos ver mais um.» O que toma forma a partir das cenas seguintes é a comunhão entre estas duas mulheres, a profunda transformação de uma em benefício da outra, desprovendo-se de si própria. Como é algo muito mais dilacerante, muito mais cáustico do que a angústia, o desgosto ou a inquietação: a alegria. Não se pode perder uma única oportunidade pela alegria, e Almodóvar sabe-o. 
Há uma grande lição neste filme. Perante a guerra — e o cancro é uma guerra —, perante o neoliberalismo, a ascensão da extrema-direita, perante a manipulação, a obsessão panfletária absolutista que, ao invés de mobilizar, paralisa, a bondade é decisiva. As pessoas que acompanhamos neste filme estão abertas umas às outras, da assistente na livraria à rececionista no ginásio e ao treinador, como ao amante comum que, embora depositário de uma pesada impiedade de consciência, em nada, rigorosamente nada, lhes falha. A bondade, a generosidade, a gentileza, a amabilidade. A amizade. Coisas demasiado simples, difíceis de praticar num mundo de tantos egos, que podem ser a resposta para se encontrar alguma espécie de redenção. Estar em paz não significa fazer tudo certo. Com todos os nossos erros, pode-se morrer de lábios vermelhos, sem medo de nos olharmos de frente. Difíceis, também, porque essa é uma prática sem fim para a qual não há recompensa imediata, visível. Talvez seja essa a razão, só agora me ocorre, para que o próprio filme não chegue ao fim, mas a uma reconciliação para a história que ouvimos no início e de que ficamos sem saber o desfecho: através de Ingrid — que, não tendo estado no quarto ao lado, esteve presente —, Michele, a filha de Martha, apazigua o seu conflito com a mãe e deixa de a ver como uma adversária. Em nós, os mortos continuam a viver. A vida continua.

10 de dezembro de 2024