5 de setembro de 2017

é uma mulher. muito curvada, o cabelo todo branco e a pele praticamente da mesma cor, alimenta os gatos que se escondem no jardim abandonado de um palácio lisboeta. de sua casa traz o saco de comida seca e pão duro. dirige-se às traseiras do palácio e ali, no muro com altas grades, distribui a comida por vários recipientes. os gatos não demoram a chegar. um preto, um branco, um cinzento listado, alguns muito sujos, alguns bebés, miam em cima do muro enquanto ela fala e olha para mim desconfiada quando passo por eles. só falámos uma vez. contou-me a vida toda e agora este olhar, duro, hostil, silencioso. esteve para casar, mas a irmã adoeceu e ela veio tomar conta dela para a casa onde ainda hoje vive. passo por lá com frequência e espanta-me sempre que só veja estendidos trapos rasgados, uns a seguir aos outros, ou cuecas. a casa fica num rés-do-chão que mais parece uma cave, com degraus que descem para o interior e janelas ao nível da estrada, sempre protegidas por uma rede contra as moscas. o estendal foi feito com um pau de vassoura e um cordel verde, já muito gasto. sempre que posso, espreito para dentro da casa, como se com isso pudesse saber mais sobre a sua vida. às vezes, quando a encontro a alimentar os gatos, digo boa tarde, mas ela nunca responde, continua imersa na sua tarefa a falar com os gatos que miam. lembro-me que fez bordados e costura para ganhar a vida, que a irmã entretanto morreu e que já não trabalha. nunca, quando passo por casa dela, oiço um rádio ou uma televisão acesos. pergunto-me se se sente só, se precisará de dinheiro, se abre álbuns de fotografias para recordar os tempos de juventude. pergunto-me o que será dos gatos quando morrer.