29 de janeiro de 2017

não me lembro da última frase que me disse. foi uma discussão violenta, mais uma, com a mãe e o marido presentes, e eu fui-me embora, recusando voltar a entrar em choque, físico e emocional, como acontecia amiúde nas nossas discussões. estávamos de férias? como voltei para casa? lembro-me que saí da casa onde estávamos e atravessei a estrada para dizer à mãe dela, que estava sentada num banco de rua: «percebe porque é que tenho de me afastar?» e que ela respondeu apenas «sim», a olhar para o chão, com a mão pousada sobre os lábios. não dissemos mais nada além disso. depois veio o marido, dizendo que haveria de reconsiderar e ter paciência, ao que respondi determinada e seca, «nunca mais». tinha vergonha da forma como ela o tratava a ele também, mas sobre isso não disse nada, para não pronunciar ainda mais o constrangimento que todos sentíamos pela sua falta de reação. achei que, um dia, também ele haveria de se fartar e fazer o mesmo. era um homem bondoso, gentil, afável e inteligente, como eu, um boneco nas mãos dela, que nos arrancava a todos do sério e sabia tocar nos traços mais secretos, e mais inconfessáveis, da nossa intimidade. quando a conheci, na faculdade, observei-a ao longe, como aos outros, e pareceu-me fechada, distante, compenetrada nos estudos, disciplinada, coisa que eu pouco era. nas raras ocasiões em que falava, não se dava a conhecer, como se tivesse criado uma espessa e impenetrável membrana à sua volta. mesmo assim, nas aulas todas as atenções se dirigiam para ela, o que eu não percebia bem. percebia que era uma pessoa singular, mas estava rodeada de uma estranheza que eu não sabia definir. não se soltava, como nós, que rapidamente nos tínhamos afeiçoado uns aos outros e ficávamos a conversar no bar da faculdade, divertidos e inflamados com os assuntos que estávamos a estudar. ela não se misturava. assumi, com desinteresse, que estava longe da minha fasquia, que nunca olharia para mim, mas também via algo de perigoso na sua aura. no entanto, enquanto os outros a achavam provocadora e hostil, eu via nela a certeza e a melancolia que frequentemente estão associadas à inteligência, e, de certo modo, admirava-a, como se admira a beleza de uma montanha numa fotografia, distante e inalcançável, como uma quimera. um dia, porém, logo no início do ano, não sei porquê, e para minha grande estupefação, sentou-se ao meu lado na aula. senti-me desinquieta, por um lado porque tive medo que lesse os meus apontamentos, com vergonha de denunciar a minha ignorância, por outro lado orgulhosa que tivesse escolhido, entre todos, o meu silêncio. nessa aula, mandaram-nos fazer um trabalho de grupo e, antes de nos levantarmos, enquanto arrumávamos os cadernos, ela olhou finalmente para mim, pela primeira vez nos olhos, e perguntou-me, muito séria, se o queria fazer com ela. aceitei imediatamente, radiosa e pasmada. foi assim que a nossa amizade começou e, durante anos, os nossos colegas nunca deixaram de a associar a mim, perguntando-me por ela mesmo quando saiu de Portugal, como se, com isso, estivessem a reconhecer que eu tinha, através do vínculo com ela, um lugar especial no mundo. e eu, durante anos, lutei para não perder esse vínculo. ela mantinha-se impenetrável para todos menos para mim. isso conferia-me características invulgares, de excelência, porque ela era excelente. no dia em que fui para casa dela fazer o trabalho de grupo, estava mais nervosa que uma virgem na noite de núpcias mas também curiosa pelo que ia encontrar. ela recebeu-me com um sorriso — nunca a tinha visto sorrir, descontraída como estava — e mostrou-me a casa. as paredes do seu quarto estavam recheadas de prateleiras com romances, livros sobre arte, livros de filosofia, e eu lembrei-me das minhas origens humildes, percebendo uma vez mais que não tinha tido hipótese de desenvolver as minhas capacidades. aqueles livros, bem arrumados do chão ao teto, eram a riqueza que eu, habituada à biblioteca, nunca tinha visto nas mãos de ninguém. alguém tinha cuidado dela ao passo que ninguém tinha cuidado de mim. mas onde estavam os pais dela? teriam morrido? vivia com a avó, uma senhora com o cabelo todo branco cheio de caracóis, nesse dia bastante carrancuda, e um gato chamado Milan que, para minha estupefação, lhe obedecia como um cão e, a um sinal da mão dela, rodava sobre si próprio ou dava turras. «vês, sempre sem unhas», disse ela, e o meu espanto adensou-se ainda mais. «quem é esta mulher?», pensei, devorada pela curiosidade. queria saber tudo sobre ela, mas coibi-me de lhe fazer uma só pergunta, pelo pudor que me caracterizava mas também estrategicamente, pois receava fazer alguma revelação que a desiludisse, quebrando a fluidez e a docilidade daquele primeiro encontro, e não queria ofender o recato que demonstrava na faculdade. seria eu, entre todos os meus colegas, a primeira a entrar na casa dela? sentia-me A escolhida, como numa epopeia. contudo, não sabia nada nem sobre a sua vida nem sobre a matéria que tínhamos de trabalhar e, do que tinha lido, percebi menos ainda, desistindo logo nas primeiras páginas e entregando ao destino o trabalho e o que ia acontecer entre nós. como iria safar-me não sabia. aquilo podia ser coisa de uma vez mas pelo menos haveria de viver essa vez. talvez por isso, estava atenta ao mínimo movimento dela, como que para sorver o máximo da sua vida e dos seus detalhes. todavia, quando começámos a trabalhar, sentadas a uma mesa da sala voltada para a janela (ela do meu lado esquerdo, pois não tive coragem de lhe dizer que não ouvia do ouvido esquerdo), foi como se já me conhecesse e portanto soubesse perfeitamente que estava a léguas. serena e perseverante, guiou-me de linha em linha, fazendo por vezes perguntas para as quais eu não tinha resposta e ou dizia o que me vinha à cabeça ou não dizia nada, engolindo em seco. porque me teria então escolhido a mim? cheguei a interrogar-me se não me teria escolhido precisamente pela minha ignorância e, nesse caso, com que objetivo. alarmei-me um pouco, sobretudo porque me embaraçava que ela soubesse. combinámos que passaríamos a reunir-nos sempre ali em casa até o trabalho estar concluído. ela parecia estar contente. apesar de eu pouco ter contribuído para o avanço da apresentação, continuava a sorrir para mim, afável e delicada. eu achei curto o nosso encontro e, mal ela fechou a porta, comecei a contar os minutos que me separavam do próximo e a rever mentalmente todos os cheiros, palavras e gestos que tinham feito parte daquelas horas. estava feliz como uma criança a quem dão um chupa-chupa pela primeira vez: não sabe exatamente o que é, mas sabe que é bom.