20 de setembro de 2016

as rotinas eram mais importantes para ele do que qualquer outra coisa no mundo e o rigor dessas rotinas mais do que as próprias. depositava nele não só uma esperança mas a ambição que no final das contas o mantinha vivo. assim que não era raro recusar convites mercê dessa ambição. dormia cedo, levantava-se cedo, abastecia-se no supermercado como numa farmácia, corria todos os dias, lia, conversava com o jornaleiro, alimentava os pássaros. ouvia música ao final da tarde, quando o lusco-fusco entrava em casa e as sombras dos objetos cresciam até ao teto. poucos falavam sobre ele, mas esses poucos imaginavam muito. que depois do divórcio se tinha fechado ao mundo, que a tristeza o consumia, que tinha enlouquecido, eram as mais frequentes. de resto, passava despercebido, mesmo numa aldeia cujos habitantes desapareciam a pouco e pouco, em fuga para a cidade. por vezes pensava nas suas rotinas, em como cada uma delas tinha sido conquistada com a força de um déspota, até enfim se harmonizar docilmente com a sua vontade. nesses momentos, dominava-o um sentimento de gáudio ostensivo, semelhante ao daquele que se descobre amado. tinha algo que valia a pena na vida, estava a salvo da vagabundagem e da tirania da memória. não tendo nascido perfeito, vivia equilibradamente; sujeito à infelicidade, estava protegido das catástrofes, pois nem um grande abalo poderia afetar o seu modo de vida. a certa altura, até os seus sonhos obedeciam a uma rotina. tinham-se tornado curtos e terríficos. num deles, o mais recorrente, sobretudo nos últimos tempos, Deus falava-lhe, exigindo que O louvasse. «Eu Sou a Vida das vidas, a luz do teu espírito, e grande é a Minha misericórdia por todas as almas», por exemplo. era uma voz que preenchia o espaço mas sem eco, imperiosa, e acordava sempre assim que a ouvia, por vezes antes do despertador tocar, o que muito o aborrecia. «da Minha boca nasceu toda a criação, incluindo o bem e o mal, e eu sou a tua esperança no mundo dos vivos» e «Eu Sou o Deus amoroso cuja substância não muda». o mais estranho, e também o mais assustador, nesses sonhos, era o facto da voz não vir do céu, de um trovão ou de qualquer ser místico mas sim do interior da sua casa. uma vez era o Artur que falava, o seu pássaro mais velho. chegou a vir do forno e de uma planta, morta há muito, que no sonho estava verde e viçosa. no último destes sonhos, tinha acordado num pranto, aflito e cheio de sede, obrigado a levantar-se antes da hora e portanto a quebrar as regras da temperança. enquanto isso, apesar do seu coração se agitar, a sua solidão continuava. nunca tinha acreditado em Deus, porque raio agora haveria Ele de vir falar-lhe. como qualquer um, procurou os benefícios da fé, mas nunca a palavra deixou de lhe parecer esvaziada de significado, ficando assim exilado no conjunto dos homens que não têm nada de transcendente para partilhar. em tempos, curioso, foi assistir a uma ou outra missa e tentou ler a Bíblia mas, não encontrando nisso alento, abandonou os seus projetos sem pudor e sem retorno. também tentou rezar mas não conseguia ajoelhar-se e nunca sabia o que havia de dizer. e agora, justamente agora, Deus falava-lhe, noite após noite, em sonhos que lhe pareciam mais reais do que a vigília. estas visões tinham tanto de curioso como de enigmáticas. «Sou a tua salvação», dizia-lhe Deus, e, pelo menos no sonho, ele acreditava. a certo ponto, começou a ter medo de os perder. passou a gostar de ter algo acima da sua inteligência, que não controlava. os sonhos eram uma constante, e isso era o que mais importava. que fosse a voz da verdade, isso, permanecia sem explicação. estas suas visões não eram fruto da imaginação, antes, mais do que o conselho do sábio ou do rei, transcendiam os limites do espaço e do tempo e pareciam carregar um ensinamento e assim, pensou que poderia ele próprio tornar-se um profeta. afinal, apreendia de forma imediata e correta a verdade, o que bastava para deduzir dela uma revelação. fazia-o de forma fria e, não sem prazer, percebia que podia esquecer os seus próprios interesses e excluir qualquer extravagância insensata. não se tratava de revelações fruto de uma imaginação ociosa nem de superstições mas a este dom profético faltava contudo uma prova satisfatória. a voz da verdade era evidente em si mesma, uma imagem perfeitamente clara que não poderia ser de outra forma, única e inevitável, e por isso mesmo irreprodutível. a verdade absoluta não podia ser refutada nem confirmada e portanto não havia como a demonstrar. veio-lhe à ideia que isso era uma possível definição do nada, mas não se deteve para pensar sobre isso. por alguma razão, tinha-se tornado um canal: entre si e o divino, embora a dormir, havia agora um contacto direto. era um privilegiado sem ter tido qualquer escolha e isso fazia da sua vida na vigília um espelho de contrastes daquela que vivia durante o sono pois, na primeira, as suas escolhas eram determinantes. contudo, para ser honesto, tinha de reconhecer que nunca na vida tinha ensinado nada a ninguém. e a natureza da verdade que lhe era revelada, não era uma questão que se pudesse transmitir por via da crença, mas antes qualquer coisa que cada um teria de ver por si mesmo, ou não ver. o seu interesse pela voz foi assim perdendo intensidade. na realidade também podia estar a ser induzido em erro. perfeitamente consciente do que fazia, a interpretação da mensagem que tinha para revelar, não passava enfim de uma conjetura. estava agora convencido da sua ingenuidade e que o que se passava nos seus sonhos, como todas as coisas na vida, tinha uma explicação prosaica e racional. não era um profeta mas sim um espetador: precisava de iludir-se.