27 de setembro de 2016
aqui há tempos, num grupo em que se partilhava textos, li um dos meus com um diálogo, e de todos os presentes recebi a mesma reação: isso não é credível porque já ninguém fala assim. ora, o texto em causa era autobiográfico e limitava-se a descrever um encontro que tinha realmente acontecido e o que tinha realmente sido dito. nisto da língua, sinto-me muitas vezes noutro tempo, usando regras e palavras que já ninguém reconhece, e isto mesmo tendo adotado o «monstruoso» novo acordo ortográfico. da língua, digo eu, porque a língua também porta gestos e comportamentos. no texto em causa, eu falava com uma pessoa que vivia na rua, acharam os meus colegas, de forma demasiado cortês. não era credível porque ninguém ali presente se imaginava a olhar nos olhos um indigente e a conversar com ele, mas sobretudo porque ninguém imaginava que esta pessoa pudesse ter um discurso tão organizado, tão elegante, tão generoso. se não estivesse lá ninguém para ouvir, de facto, não teria. temos uma sociedade constituída por surdos, surdos sociais, surdos políticos, surdos produtores, surdos morais. e se não se ouve, não se vê. cada vez mais desconfio da exaltação, que está por toda a parte como sinal de uma vida autêntica e de seres humanos empenhados. desempenharmo-nos é preciso.