9 de dezembro de 2014

defendi-me do gesto como se nem conhecesse aquela criatura, subitamente maldita. o céu negro noturno estava coberto de nuvens, azuis, a serem arrastadas pelo vento, que eu podia ver através da janela no teto. percebi em mim uma enorme vergonha. vi que ele tinha vontade de chorar. qualquer coisa parecia ter-se dilacerado nele, não sei o quê, apenas isto era evidente: a minha imagem tinha desaparecido. nada no seu olhar me refletia, quem quer que eu fosse naquele momento era-me estranho. qual de nós teria desaparecido primeiro? e, se não era a mim que ele via, quem seria a sua vítima?
assustado, levantou-se e fugiu, como se fosse ele o animal ferido. soube instantaneamente que o perdoaria.
deixei-me ficar deitada sobre o colchão nu. tinha de me levantar e ver se havia sangue mas não me mexi durante muito tempo, nem para voltar a fechar a porta que entretanto tinha sido deixada entreaberta. ouvia apenas o silêncio regressar e esperava. não tinha dores, não chorei. levantei o tronco. o colchão estava intacto, bem como as minhas roupas. vesti-as, procurando descobrir a cada movimento do meu corpo se ele me obedecia como antes. e nada tinha mudado. saí, voltei a trancar a porta à chave, desci as escadas, entrei em casa e dirigi-me à casa de banho. debaixo da água, verifiquei que o que tinha acabado de acontecer não tinha deixado qualquer marca no meu corpo. foi aí que percebi que o pior estava ainda para acontecer. um terror invisível acabava de chegar à minha vida. nada tinha mudado.