10 de dezembro de 2014

decifração das formas.
durante anos vivi no temor da descoberta das mãos. escondi-as dos olhares, e do meu próprio, até mesmo enquanto me preparava para adormecer. estas extremidades que nunca se tornam invisíveis foram o meu mais terrível pesadelo. não apenas na infância e na adolescência mas até há pouco tempo atrás quando, um dia, não sei porquê, decidi libertá-las da prisão a que as tinha submetido. creio porém saber o que esteve na origem desta repulsa, que mais tarde formou corpo para além de mim.
quando comecei a escrever, escrevíamos manualmente. durante muitos anos, naquilo que foi bem mais de metade da minha vida, escrevi e desenhei através da força da mão. não sei se por ter começado cedo se por predisposição natural, formei calos na mão da direita muito pronunciados em dois dedos, dois dos três dedos que tocavam no lápis. o crescimento da mão esquerda nunca foi perturbado. já a mão direita começou a desenvolver uma espécie de músculo, como um atleta na ginástica. cresceu imperturbavelmente votada ao que fazia, sem quaisquer inquietações, nem estéticas nem de género. eu olhava para ela e achava-a monstruosa. da mesma maneira que olhava para o que escrevia e receava que, mais dia menos dia, de mim pudesse sair um monstro. e assim, na impossibilidade de impedir o seu crescimento, havia pelo menos que ocultá-lo, sob pena de me ver definitivamente exilada da comunidade. foi desta forma que desisti de me ocupar das mãos e decidi escondê-las, fingindo ao mesmo tempo ignorar o meu horror perante o crescimento dos calos nas alturas em que escrevia mais, bem como o meu desespero nas alturas em que escrevia menos, porque mesmo com a interrupção, estes não sofressem qualquer mudança.
quando os computadores chegaram, os hábitos de escrita alteraram-se rápida e radicalmente. apesar de continuarem diante de mim, e de agora as fazer trabalhar às duas, foram as pontas dos dedos que passaram a sofrer um impacte. e este impacte (é curioso) não deixa marcas. com isto, à medida que os anos passaram, um dos calos praticamente desapareceu e o outro amoleceu. neste momento, na verdade, apenas eu sei que ele lá está.
creio que não houve nada na minha vida em que eu tivesse pensado tanto como nas minhas mãos, dissimulada ou claramente. este ano, decido falar sobre elas — pela primeira vez —, por acaso, a um amigo que, dada a singeleza das minhas palavras, não se apercebeu da importância que o assunto tinha para mim. revelei-lhe na altura o maior dos segredos sobre as minhas mãos, aquele que pensei querer ocultar até à morte: «tenho uma mão de mulher e uma mão de homem», disse-lhe. «uma com dedos finos e delicados, bonita até. outra com dedos grosseiros e tortuosidades, como a mão de um agricultor. é essa a mão com que escrevo.», disse-lhe. mas não consegui dizer a palavra calo. algum tempo depois falei a um segundo amigo uma segunda vez e agora tu o lês. não posso contudo afirmar que isto tenha sido surpreendente. simplesmente aconteceu, como o cabelo embaraçado de manhã acontece e os dióspiros no outono. não senti nada digno de lembrança nem antes nem depois embora o cabelo embaraçado seja um desafio e os dióspiros excelsos.
tenho andado a pensar numa incorreção ou numa imperfeição que há algum tempo cometi num texto, onde procurei descrever como passei anos a escondê-las. na verdade não se pode esconder as mãos. em primeiro lugar, a não ser que andemos sempre de luvas, é impossível. em segundo lugar, esconder as mãos atrairia demasiado os olhares, acabando por resultar precisamente no oposto do nosso propósito. as mãos são o centro do corpo e funcionam como a voz, cuja sonoridade tem efeito decisivo. das minhas mãos, quando as escondia, a base do pulso, as costas e os nós dos dedos sempre estiveram visíveis. o que eu nunca deixava ver eram as pontas dos dedos.
foi quando caminhava sob o luar que ontem me ocorreu o esclarecimento. num quase ameno final de tarde invernoso, praticamente sem vento, de céu negro, numa rua deserta, vi subitamente a imagem de um bebé que nasce, a pele transparente e enrugada, os berros, os líquidos, o cordão e os dedos das mãos que se estendem para logo voltarem a cerrar-se. imediatamente a forma das suas mãos fechadas aderiu à forma das minhas mãos, que até há pouco tempo eu cerrava precisamente como um recém nascido: enrolando os dedos para esconder as pontas.
não sei o que significa isto ou o que signifique talvez não tenha lugar na escrita pois lhe escapa como escapa a qualquer dizer. mas a associação entre as duas imagens desembaraçou-me. formas que invariavelmente dão origem a outras formas, tantas vezes não sei o que significam, tantas vezes se significam apenas a si próprias. o que se encontra no entanto, não é aquilo que se procurou. quando escrevi o primeiro texto sobre a prática obsessiva em esconder as minhas mãos dos olhares, sabia que não estava a ser rigorosa. percebi que esse pormenor tinha uma importância particular, aglutinadora, como se a forma principal tombasse do seu pedestal à revelação daquela que detinha efetiva consistência. quero pensar nestas formas. é com elas que vivo no meu mundo de fantasia. não as chamo, não as imagino: elas surgem e precipitam-se com uma eficácia paradoxal, agem profundamente prescindindo das imagens e oferecem-se, através da linguagem, como enigmas para serem decifrados. a sua decifração abre lugar ao silêncio, onde invisto como o archeiro.