29 de junho de 2014
Sonhei há uns meses que T. saía da casa de A. à minha chegada. Tinha novamente o cabelo comprido, liso e brilhante, que me alegrou, mas vestia um casaco de peles cinzento claro e tinha um bigode, que me fizeram compará-lo a um chulo nova iorquino. Tudo isto se passa à porta da casa, nas escadas escuras de um prédio sujo com uma luz amarelada e paredes mostarda; ele saía de casa e descia as escadas, passava por mim sem me dizer nada, como se não me conhecesse, e com um sorriso de escárnio que não percebi se seria dirigido a mim ou motivado pelo que tinha acontecido dentro da casa antes da porta se abrir para me receber. Com o queixo ligeiramente pendido sobre o peito e um olhar ameaçador, A. encarava a minha expressão atónita por dar de caras com aquela amizade, e também não disse palavra. Não cheguei a falar antes de acordar mas pensei: Não posso entrar nesta casa. Na altura, por associação, lembrei-me imediatamente da frase da Yourcenar, que guardei: Não viveis feliz nesta casa cheia de risos. Na minha casa reina um grande silêncio. Vinde. Ela aceitou.*
Hoje, antes de conseguir acordar, morria debaixo de uma invasão de pequenos insetos que a minha compaixão impedia de matar. Acordei com a sensação de ter trazido a doença do lado de lá, de estar exposta a uma fragilidade impiedosa e antes de ser noite já a febre tinha chegado. Toda a angústia é uma forma de esperança.
*Marguerite Yourcenar in A Obra ao Negro.
Hoje, antes de conseguir acordar, morria debaixo de uma invasão de pequenos insetos que a minha compaixão impedia de matar. Acordei com a sensação de ter trazido a doença do lado de lá, de estar exposta a uma fragilidade impiedosa e antes de ser noite já a febre tinha chegado. Toda a angústia é uma forma de esperança.
*Marguerite Yourcenar in A Obra ao Negro.
Tentativa de descrever o rosto dela - I
Neste momento vejo a sombra que se projeta sobre os seus olhos, encobrindo-os totalmente assim que faz pender ligeiramente a cabeça, como se tudo dentro dela se continuasse, primeiro para fora do corpo, depois sobre a pele, depois para além dos limites do corpo. Quero refugiar-me nesta sombra. Os olhos encovados debaixo de umas sobrancelhas grossas e largas são pequenos e rasgados, as pestanas fartas. A cor mostra-se consoante sorri, conversa ou permanece silenciosa. Muitas vezes são verdes, muitas vezes cinzentos, por vezes castanho escuro e quando uma vez a encontrei num jardim, de um castanho amarelado, como se nela houvesse um outono inflexível. O nariz, comprido e largo, oscila pronunciadamente para a esquerda na extremidade, onde as narinas são negras e delicadas. O lábio inferior acompanha a oscilação do nariz, tem uma infinidade de profundas gretas vermelhas carnudas e a curva onde a sua cor acaba azulada, acentua o largo queixo duplo onde o rosto se prolonga robusto, e que ela projeta para cima quando canta.
Neste momento vejo a sombra que se projeta sobre os seus olhos, encobrindo-os totalmente assim que faz pender ligeiramente a cabeça, como se tudo dentro dela se continuasse, primeiro para fora do corpo, depois sobre a pele, depois para além dos limites do corpo. Quero refugiar-me nesta sombra. Os olhos encovados debaixo de umas sobrancelhas grossas e largas são pequenos e rasgados, as pestanas fartas. A cor mostra-se consoante sorri, conversa ou permanece silenciosa. Muitas vezes são verdes, muitas vezes cinzentos, por vezes castanho escuro e quando uma vez a encontrei num jardim, de um castanho amarelado, como se nela houvesse um outono inflexível. O nariz, comprido e largo, oscila pronunciadamente para a esquerda na extremidade, onde as narinas são negras e delicadas. O lábio inferior acompanha a oscilação do nariz, tem uma infinidade de profundas gretas vermelhas carnudas e a curva onde a sua cor acaba azulada, acentua o largo queixo duplo onde o rosto se prolonga robusto, e que ela projeta para cima quando canta.
28 de junho de 2014
Wittgenstein
As mulheres percebem cedo o que a maioria dos homens morre sem encontrar, que o que importa não é o quê mas o como. Toda a história da emancipação feminina e funcionamento das sociedades patriarcais são o resultado disto, a saber, de que forma dispor o silêncio nas fundações e seja assim a própria ruína a sustentá-las.
As mulheres percebem cedo o que a maioria dos homens morre sem encontrar, que o que importa não é o quê mas o como. Toda a história da emancipação feminina e funcionamento das sociedades patriarcais são o resultado disto, a saber, de que forma dispor o silêncio nas fundações e seja assim a própria ruína a sustentá-las.
26 de junho de 2014
Acordando de um pesadelo é sossegado pela mãe que diz: Já passou, foi só um sonho. Sente o peso da humidade dos lençóis. Apercebe com surpresa a claridade do céu noturno. Ouve-se respirar sofregamente e mais sôfrego seria a respirar se não estivesse tão abafado. À exceção da voz da mãe, os sons demoram a chegar, incluindo os do seu próprio corpo. Responde-lhe: Agora já não é?
24 de junho de 2014
23 de junho de 2014
Tínhamos um único denominador comum: ambas gostávamos de desenhar. E contudo, para além da ausência de coincidências sobre o que pensávamos e pensávamos querer, uma fusão extrema, visceral entre nós, da qual eu cuidava ferreamente.
Saíamos juntas do colégio e entrávamos no bairro logo ao lado, onde cada uma se dirigia a sua casa para almoçar. Eu deixava-a à porta de casa e voltava a chamá-la ao portão para regressar com ela à escola. Se ainda fosse cedo para o toque, entrava na casa, podíamos brincar. Havia um jardim com cimento caiado e roseiras, pratos de cerâmica castanha, colchas de renda sobre camas de madeira quase negra, espelhos marroquinos, armários antigos, maciços, com espelhos colossais, demasiado maciços e demasiado colossais, como se fossem passagens para outros mundos, perigosas passagens, de cujo vórtice as chaves e os espelhos nos protegiam. Tinha reverência nesta casa, aos adultos que pouco via e sobretudo a estes objetos estranhos, intrigantes. Tivemos uma discussão no pátio, quase no final da quarta classe e portanto a poucos meses de nos separarmos. Não recordo o que dissemos, apenas que falávamos sobre o futuro. O que disse custou-me muito dizê-lo, por chocar com o que ela tinha acabado de afirmar e por ser a primeira vez que escolhia não me calar para dizer uma coisa que eu era e afirmava uma vontade irrefutável. O silêncio caiu peça a peça por toda a parte. Ela nem olhou para mim.
Em cima de uma colcha branca de renda, num fim-de-semana de inverno, falávamos sobre o que havíamos de fazer naquela tarde. Estávamos deitadas de barriga para cima, com o corpo a atravessar a cama na diagonal, muito pequenas sobre uma enorme cama antiga de solteiro, para cima da qual escalávamos. Falávamos sobre legos, monopólios, casas de bonecas e eu pensava em porque é que apesar de tão próximas, a escassos milímetros uma da outra, as nossas mãos evitavam tocar-se quando o seu joelho direito tocou no meu joelho esquerdo para logo se afastar, como se tivesse apanhado um choque elétrico. Ali estava. Um joelho mole, quente, que eu sabia mesmo sem olhar ter uma nódoa-negra com um dos lados ligeiramente amarelo. Continuei a conversar sem me mover, a pensar nas mãos e nos pés e nos corpos que não se tocam facilmente mas já com medo de não estar a produzir um discurso coerente que felizmente ia sendo entrecortado de silêncios magníficos, preenchidos por madeira maciça, camas quentes e chuva a cair do lado de fora da casa. Foi quando tive vontade de a beijar.
Debrucei-me para ela que continuava sem se mover, voltando o corpo de lado. Estava com medo daquilo e sem saber se teria coragem para o fazer. Alarmava-me o desejo de um beijo na boca, a ausência de repulsa, a incompreensível vontade de enterrar a minha mão no corpo dela, de sentir o seu calor. E em tudo isto uma prodigiosa limpeza de incógnitas. Toquei-lhe na mão e olhei para ela, ela olhou para mim, ela fugiu. «Queres ver cartas?», perguntou já de pé, fora da cama. «Que cartas?», «As cartas de namoro dos meus pais. É suposto eu não saber onde estão». Abriu com dificuldade a enorme gaveta inferior do armário com a obscura passagem e retirou um maço de pequenas cartas atadas com uma fita vermelha. Depois fomos abrir baús, também eles proibidos, e por um triz não nos apanharam quando a noite já engolia a sala connosco dentro sem brinquedos e sem termos acendido uma luz.
Saíamos juntas do colégio e entrávamos no bairro logo ao lado, onde cada uma se dirigia a sua casa para almoçar. Eu deixava-a à porta de casa e voltava a chamá-la ao portão para regressar com ela à escola. Se ainda fosse cedo para o toque, entrava na casa, podíamos brincar. Havia um jardim com cimento caiado e roseiras, pratos de cerâmica castanha, colchas de renda sobre camas de madeira quase negra, espelhos marroquinos, armários antigos, maciços, com espelhos colossais, demasiado maciços e demasiado colossais, como se fossem passagens para outros mundos, perigosas passagens, de cujo vórtice as chaves e os espelhos nos protegiam. Tinha reverência nesta casa, aos adultos que pouco via e sobretudo a estes objetos estranhos, intrigantes. Tivemos uma discussão no pátio, quase no final da quarta classe e portanto a poucos meses de nos separarmos. Não recordo o que dissemos, apenas que falávamos sobre o futuro. O que disse custou-me muito dizê-lo, por chocar com o que ela tinha acabado de afirmar e por ser a primeira vez que escolhia não me calar para dizer uma coisa que eu era e afirmava uma vontade irrefutável. O silêncio caiu peça a peça por toda a parte. Ela nem olhou para mim.
Em cima de uma colcha branca de renda, num fim-de-semana de inverno, falávamos sobre o que havíamos de fazer naquela tarde. Estávamos deitadas de barriga para cima, com o corpo a atravessar a cama na diagonal, muito pequenas sobre uma enorme cama antiga de solteiro, para cima da qual escalávamos. Falávamos sobre legos, monopólios, casas de bonecas e eu pensava em porque é que apesar de tão próximas, a escassos milímetros uma da outra, as nossas mãos evitavam tocar-se quando o seu joelho direito tocou no meu joelho esquerdo para logo se afastar, como se tivesse apanhado um choque elétrico. Ali estava. Um joelho mole, quente, que eu sabia mesmo sem olhar ter uma nódoa-negra com um dos lados ligeiramente amarelo. Continuei a conversar sem me mover, a pensar nas mãos e nos pés e nos corpos que não se tocam facilmente mas já com medo de não estar a produzir um discurso coerente que felizmente ia sendo entrecortado de silêncios magníficos, preenchidos por madeira maciça, camas quentes e chuva a cair do lado de fora da casa. Foi quando tive vontade de a beijar.
Debrucei-me para ela que continuava sem se mover, voltando o corpo de lado. Estava com medo daquilo e sem saber se teria coragem para o fazer. Alarmava-me o desejo de um beijo na boca, a ausência de repulsa, a incompreensível vontade de enterrar a minha mão no corpo dela, de sentir o seu calor. E em tudo isto uma prodigiosa limpeza de incógnitas. Toquei-lhe na mão e olhei para ela, ela olhou para mim, ela fugiu. «Queres ver cartas?», perguntou já de pé, fora da cama. «Que cartas?», «As cartas de namoro dos meus pais. É suposto eu não saber onde estão». Abriu com dificuldade a enorme gaveta inferior do armário com a obscura passagem e retirou um maço de pequenas cartas atadas com uma fita vermelha. Depois fomos abrir baús, também eles proibidos, e por um triz não nos apanharam quando a noite já engolia a sala connosco dentro sem brinquedos e sem termos acendido uma luz.
19 de junho de 2014
18 de junho de 2014
Escrevo várias horas por dia há vários dias e quando encontro uma pessoa que me pergunta o que ando eu a fazer respondo, depois de uma breve hesitação, «nada». Quem não publica não escreve e eu hesito porque quero formular uma resposta que evite em definitivo a pergunta que se segue, «onde posso ler o que escreves?», a que daria uma resposta estruturada desviando vigorosamente o interesse e sem fornecer quaisquer indicações.
16 de junho de 2014
Viagem de comboio entre Braga e Porto, verão de 2013. Enquanto estamos parados em Terrugem, um rapaz montado num enorme cavalo castanho luzidio atravessa a estação e sai para a vila. Já com o comboio em andamento reparo ao longe, entre o verde das vinhas, das figueiras, dos pinheiros, dos pomares, a pedra dos muros e das casas, diante de uma casa grande à beira da estrada que atravessa a pequena aldeia pela qual passamos, está montada ao sol uma grande mesa para o jantar, com muitas cadeiras à volta. Apetece-me entrar nos bosques e arrancar eucaliptos. Vim para os bosques para arrancar eucaliptos deliberadamente.
Água a correr, um vespão, uma lagartixa, rãs, outros insetos, pássaros, coelhos, galinhas, portas que se abrem e se fecham, as maçanetas dessas portas que rodam, passos e o restolhar das batinas, orações, cânticos, fogo a crepitar nas lareiras e na cozinha, pratos, talheres, vento, instrumentos agrícolas, a terra a abrir-se pelo machado, folhas que caem: o silêncio neste mosteiro correspondia apenas à ausência da fala, uma espécie de conformidade ao tempo, esse perversamente auditivo.
Depois da minha visita peço um copo com água. O segurança, simpático e familiar, faz-me descer à cozinha dos funcionários; fico contente por poder conhecer também estes espaços, ocultos, destinados ao trabalho de hoje. Apesar de estar uma garrafa de água do Luso em cima do balcão, abre a torneira para encher o copo que me vai oferecer, o que me parece uma indelicadeza enquanto reparo ao mesmo tempo que a água que cai no copo tem uma limpidez estranha, uma transparência quase perturbante. E sabe bem. À medida que a bebo, recordo qualquer coisa que não consigo distinguir, como se a cada golo recuasse com assombro de regresso a um gesto comum, só meu. Estou quase no fim quando o segurança revela que é água da fonte, que toda a água que abastece o mosteiro provém dela e que os funcionários - diz risonho e satisfeito - enchem garrafões de cinco litros para levar para casa. A água da fonte é a água do poço da casa dos meus bisavós, e não sei se o tempo que vivi morrerá comigo ou se é absoluto como o vejo, mas sou ainda essa criança, diante do mesmo poço e da mesma água. O táxi chega, nunca vi um táxi assim. É um brilhante Mercedes negro, sem placa nem número, sobe a ladeira a grande velocidade e para à frente da entrada principal do mosteiro. O taxista sai, abre-me a porta e chega o banco ao lado do condutor para a frente, para que eu fique com mais espaço atrás. Despeço-me do segurança com um aperto de mão e quando a porta do táxi se fecha sou fulminada por uma melancolia cortante, que me envolve como uma serpente mata. Procuro aflita a razão mas não consigo evitar comover-me. Sei apenas que me despeço da beleza e que o silêncio que subitamente se abate dentro do carro me submerge.
Depois da minha visita peço um copo com água. O segurança, simpático e familiar, faz-me descer à cozinha dos funcionários; fico contente por poder conhecer também estes espaços, ocultos, destinados ao trabalho de hoje. Apesar de estar uma garrafa de água do Luso em cima do balcão, abre a torneira para encher o copo que me vai oferecer, o que me parece uma indelicadeza enquanto reparo ao mesmo tempo que a água que cai no copo tem uma limpidez estranha, uma transparência quase perturbante. E sabe bem. À medida que a bebo, recordo qualquer coisa que não consigo distinguir, como se a cada golo recuasse com assombro de regresso a um gesto comum, só meu. Estou quase no fim quando o segurança revela que é água da fonte, que toda a água que abastece o mosteiro provém dela e que os funcionários - diz risonho e satisfeito - enchem garrafões de cinco litros para levar para casa. A água da fonte é a água do poço da casa dos meus bisavós, e não sei se o tempo que vivi morrerá comigo ou se é absoluto como o vejo, mas sou ainda essa criança, diante do mesmo poço e da mesma água. O táxi chega, nunca vi um táxi assim. É um brilhante Mercedes negro, sem placa nem número, sobe a ladeira a grande velocidade e para à frente da entrada principal do mosteiro. O taxista sai, abre-me a porta e chega o banco ao lado do condutor para a frente, para que eu fique com mais espaço atrás. Despeço-me do segurança com um aperto de mão e quando a porta do táxi se fecha sou fulminada por uma melancolia cortante, que me envolve como uma serpente mata. Procuro aflita a razão mas não consigo evitar comover-me. Sei apenas que me despeço da beleza e que o silêncio que subitamente se abate dentro do carro me submerge.
15 de junho de 2014
Por vezes, mesmo quando escrevo no meu diário, hesito entre manter segredos e escrever sem explicar nada. A incerteza de chegar a tempo de destruir tudo antes que alguém conheça a miséria da minha infância que perdura, domina-me. Sou como os tementes a deus, desconfio da disciplina como do diabo que macula o que é puro e ao mesmo tempo estou presa a ela, como a uma oração.
Coisas que gostaria de corrigir:
À pergunta «Mas como é que isso se faz?» gostaria de ter respondido, procurando o olhar da única pessoa que pareceu entender aquilo que a motivou, «Queres responder T.?».
Em vez de um impropério, assumir o nada.
Ter escrito mais.
Em vez de silêncio, a gargalhada que abafei.
Que peremptória, lúcida, sagaz, não desejasse salvação, e fosse modesta a esperança que inesperadamente faz vibrar a morte.
À pergunta «Mas como é que isso se faz?» gostaria de ter respondido, procurando o olhar da única pessoa que pareceu entender aquilo que a motivou, «Queres responder T.?».
Em vez de um impropério, assumir o nada.
Ter escrito mais.
Em vez de silêncio, a gargalhada que abafei.
Que peremptória, lúcida, sagaz, não desejasse salvação, e fosse modesta a esperança que inesperadamente faz vibrar a morte.
13 de junho de 2014
Foi a escrita que me revelou os homens e nada mais.
Corpos com devastações assombrosas
E um sorriso delicado a cobrir as extremidades
Embora com algumas, premeditadas, falhas
Através das quais se mostram
Fortalecidos por silêncios implacáveis.
Foi-lhes destinada a mais ingénua malícia
De tal modo que quase sangra
Por gozar de uma atenção vegetal,
Divina.
As suas vozes tremem mas quem ouve o seu tremor?
¿Para onde vão estes fogos
Onde o tempo sucumbiu
E continua a sucumbir
Para sempre.
Toda a carne é muito mansa,
Como as torturas da memória e da certeza.
O grito espantoso, infatigável,
Possui a ociosa luminosidade das vagas
Repelindo obstinadamente o vácuo
E intoleravelmente a própria praia.
Corpos com devastações assombrosas
E um sorriso delicado a cobrir as extremidades
Embora com algumas, premeditadas, falhas
Através das quais se mostram
Fortalecidos por silêncios implacáveis.
Foi-lhes destinada a mais ingénua malícia
De tal modo que quase sangra
Por gozar de uma atenção vegetal,
Divina.
As suas vozes tremem mas quem ouve o seu tremor?
¿Para onde vão estes fogos
Onde o tempo sucumbiu
E continua a sucumbir
Para sempre.
Toda a carne é muito mansa,
Como as torturas da memória e da certeza.
O grito espantoso, infatigável,
Possui a ociosa luminosidade das vagas
Repelindo obstinadamente o vácuo
E intoleravelmente a própria praia.
12 de junho de 2014
9 de junho de 2014
Como os habitantes da cidade que Chihiro visita, perdi a memória do meu nome e não posso regressar àquilo que me pertence. Há no meu corpo um tremor ligeiro, assim as folhas de uma árvore cuja imobilidade é permanentemente perturbada por elementos exteriores: o tabaco, o jejum.
A loucura espreita, insidiosa e leve. O sol que brilhe. O mar que receba os rios. Viverei como as moscas, que no seu movimento descrevem o padrão insignificante do silêncio.
A loucura espreita, insidiosa e leve. O sol que brilhe. O mar que receba os rios. Viverei como as moscas, que no seu movimento descrevem o padrão insignificante do silêncio.
8 de junho de 2014
3 de junho de 2014
Será certamente pueril da minha parte mas nunca até ontem me tinha apercebido que nada me revolta tanto quanto a morte. Parece uma constatação evidente, por ser a única coisa em relação à qual somos verdadeiramente impotentes, mas nunca tinha pensado nisso de forma tão inequívoca como ontem perante um caixão, a família do morto, e um padre que falava de felicidade e de paraíso a apontar com os dois dedos indicadores para o céu. Talvez porque o morto não me pertencesse tivesse sido possível pensar. Não me lembro de alguma vez ter falado com alguém sobre fé nem sobre a ausência dela, a minha. Não creio que se possa falar disso e portanto não percebo como se podem fazer palestras sobre isso. No fundo não acredito que alguma palavra tenha o poder de evangelizar. Muito menos quando morre alguém que amamos. Nesses momentos devia respeitar-se o silêncio que fica.
1 de junho de 2014
Desço a colina ao encontro dos braços de sol - soberanos, maciços - desta manhã, animada pelas roupas leves que vesti, pelo vento fresco que toca a superfície da pele do pescoço e das pernas e pelo rumor dos passos e da respiração das pessoas a entrar e a sair do comboio à beira rio. Quando entro no jardim - circular, que outra forma mais bela para um jardim? -, um cheiro atordoa-me ao ponto de me fazer parar, como um acidente.
«De onde vem de onde vem?» penso num brado abafado, enquanto percorro com dificuldade um obscuro túnel temporal cheio de lapsos e desvios insidiosos. E a dificuldade é imensa. Essa luta frágil, oca, frívola, propagava a leviandade que atrás me tinha trazido alegria. Não sabia onde estava e não podia caminhar.
Encontrei o cheiro não sei quanto tempo depois e quase nenhuma imagem. Um som abafado de crianças e de água e outro cheiro, a cloro, razão da dificuldade em reunir-me à memória do perfume deste jasmim, pois estava misturado. Sobre a ponte, que atravessava todos os dias a caminho da piscina, um tapete vermelho com bolas salientes onde me demorava a passar, os peixes dentro da água verde e os chorões debruçados sobre o rio. É sempre a mesma vertigem e sempre o mesmo inconsolado regresso a casa.
«De onde vem de onde vem?» penso num brado abafado, enquanto percorro com dificuldade um obscuro túnel temporal cheio de lapsos e desvios insidiosos. E a dificuldade é imensa. Essa luta frágil, oca, frívola, propagava a leviandade que atrás me tinha trazido alegria. Não sabia onde estava e não podia caminhar.
Encontrei o cheiro não sei quanto tempo depois e quase nenhuma imagem. Um som abafado de crianças e de água e outro cheiro, a cloro, razão da dificuldade em reunir-me à memória do perfume deste jasmim, pois estava misturado. Sobre a ponte, que atravessava todos os dias a caminho da piscina, um tapete vermelho com bolas salientes onde me demorava a passar, os peixes dentro da água verde e os chorões debruçados sobre o rio. É sempre a mesma vertigem e sempre o mesmo inconsolado regresso a casa.
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