23 de junho de 2014

Tínhamos um único denominador comum: ambas gostávamos de desenhar. E contudo, para além da ausência de coincidências sobre o que pensávamos e pensávamos querer, uma fusão extrema, visceral entre nós, da qual eu cuidava ferreamente.
Saíamos juntas do colégio e entrávamos no bairro logo ao lado, onde cada uma se dirigia a sua casa para almoçar. Eu deixava-a à porta de casa e voltava a chamá-la ao portão para regressar com ela à escola. Se ainda fosse cedo para o toque, entrava na casa, podíamos brincar. Havia um jardim com cimento caiado e roseiras, pratos de cerâmica castanha, colchas de renda sobre camas de madeira quase negra, espelhos marroquinos, armários antigos, maciços, com espelhos colossais, demasiado maciços e demasiado colossais, como se fossem passagens para outros mundos, perigosas passagens, de cujo vórtice as chaves e os espelhos nos protegiam. Tinha reverência nesta casa, aos adultos que pouco via e sobretudo a estes objetos estranhos, intrigantes. Tivemos uma discussão no pátio, quase no final da quarta classe e portanto a poucos meses de nos separarmos. Não recordo o que dissemos, apenas que falávamos sobre o futuro. O que disse custou-me muito dizê-lo, por chocar com o que ela tinha acabado de afirmar e por ser a primeira vez que escolhia não me calar para dizer uma coisa que eu era e afirmava uma vontade irrefutável. O silêncio caiu peça a peça por toda a parte. Ela nem olhou para mim.
Em cima de uma colcha branca de renda, num fim-de-semana de inverno, falávamos sobre o que havíamos de fazer naquela tarde. Estávamos deitadas de barriga para cima, com o corpo a atravessar a cama na diagonal, muito pequenas sobre uma enorme cama antiga de solteiro, para cima da qual escalávamos. Falávamos sobre legos, monopólios, casas de bonecas e eu pensava em porque é que apesar de tão próximas, a escassos milímetros uma da outra, as nossas mãos evitavam tocar-se quando o seu joelho direito tocou no meu joelho esquerdo para logo se afastar, como se tivesse apanhado um choque elétrico. Ali estava. Um joelho mole, quente, que eu sabia mesmo sem olhar ter uma nódoa-negra com um dos lados ligeiramente amarelo. Continuei a conversar sem me mover, a pensar nas mãos e nos pés e nos corpos que não se tocam facilmente mas já com medo de não estar a produzir um discurso coerente que felizmente ia sendo entrecortado de silêncios magníficos, preenchidos por madeira maciça, camas quentes e chuva a cair do lado de fora da casa. Foi quando tive vontade de a beijar.
Debrucei-me para ela que continuava sem se mover, voltando o corpo de lado. Estava com medo daquilo e sem saber se teria coragem para o fazer. Alarmava-me o desejo de um beijo na boca, a ausência de repulsa, a incompreensível vontade de enterrar a minha mão no corpo dela, de sentir o seu calor. E em tudo isto uma prodigiosa limpeza de incógnitas. Toquei-lhe na mão e olhei para ela, ela olhou para mim, ela fugiu. «Queres ver cartas?», perguntou já de pé, fora da cama. «Que cartas?», «As cartas de namoro dos meus pais. É suposto eu não saber onde estão». Abriu com dificuldade a enorme gaveta inferior do armário com a obscura passagem e retirou um maço de pequenas cartas atadas com uma fita vermelha. Depois fomos abrir baús, também eles proibidos, e por um triz não nos apanharam quando a noite já engolia a sala connosco dentro sem brinquedos e sem termos acendido uma luz.