Os ciprestes ocupam-me constantemente. Gostaria de fazer deles alguma coisa semelhante às minhas pinturas de girassóis, pois admira-me que ainda não tenham sido pintados como eu vos vejo. Nas linhas e nas proporções são tão bonitos como um obelisco egípcio. E o verde é um tom fino muito especial. É a mancha negra numa paisagem batida pelo sol, mas é um dos mais interessantes tons negros; todavia, não, posso pensar em nenhum outro que seja mais difícil de obter. Tem de se ver os ciprestes aqui contra o azul, para dizer melhor, dentro do azul.
Vincent Van Gogh, carta ao irmão Theo Van Gogh, maio de 1890.
Ainda dentro do elétrico reparo num gancho que alguém pregou à porta do lado esquerdo do condutor para pendurar o casaco, um acrescento posterior cujo metal brilha mais que o restante. A rua para onde saio é movimentada a esta hora, quem desce vai para Alcântara, Cascais, Algés, quem sobe vai para Sintra; mas tem árvores, jacarandás e amoreiras altos de que tenho o prazer de partilhar o negrume no inverno e as cores no resto do ano. Depois de a atravessar entro no bairro onde vivo. A grande poça de água que se manteve no mesmo sítio ao longo de todo o inverno, obrigando-me a fazer equilibrismo ou a contornar o passeio, desapareceu.
Encontro os canteiros dos prédios à frente do jardim, que há algumas semanas atrás estiveram a limpar, cobertos de relva. O ar ainda está quente apesar de o dia avançar rapidamente para o fim. Ao lado destes canteiros, dois rapazes com as roupas sujas de tinta combinam com um entusiasmo másculo um torneio de futebol. À saída de um parque de estacionamento, uma mulher está em pé de braços cruzados com uma expressão carregada, sem dúvida à espera de uma boleia atrasada. O olhar dela fixa-se em mim quase como se quisesse começar a conversar. Do outro lado da rua, através da janela com vidros do tamanho das paredes, vejo uma mulher sozinha e quieta na cantina vazia da universidade, ainda com a farda vestida, provavelmente a descansar e desejo que ela tenha silêncio lá dentro, que é o que acabo de encontrar cá fora: à medida que me aproximo de casa, o ruído dilui-se e desvanece. Uma alegria total sai em avalanche ao encontro deste silêncio, que segundos após é preenchido pelo chilrear dos pássaros. Esta é a minha casa.
Mas tudo isto começa com uma partida e não com uma chegada a casa, uma viagem. Durante alguns anos não sabia o significado de partir até já estar longe. Ano após ano, quando nos anunciavam «vamos para a praia», a memória fugaz do que tinha acontecido no ano anterior permitia que tudo voltasse a ser uma novidade. Saíamos cedo, ainda de madrugada, por causa do calor. A estrada levava-nos através das aldeias, com as pequenas casas à beira da estrada com portas de madeira seca e esbranquiçada pelo sol, pessoas a caminhar em fila entre o alcatrão e o bueiro e depois os campos cobertos de erva seca, searas, ou então de olivais e figueirais com muitas gerações. Entre cada uma das aldeias por onde passávamos era isso, apenas campo, de onde acontecia saírem coelhos ou cães, que o meu pai nos fazia ver abrandando o carro.
A certa altura surgiam nesta estrada grupos de gigantes. Nunca me lembrava que eles lá estavam e quando surgiam na paisagem procurava tornar o meu olhar mais ágil, de modo a absorver o maior número de detalhes possível. A sua forma era surpreendente. O tamanho e as cores seguiam-se no meu assombro, tal como o aspeto agreste da sua folhagem, que eu raramente apercebia. Debaixo do céu cinzento da madrugada, imponente sobre a paisagem, a sua sombra subia em direção ao céu e voltava a cair sobre nós como se mais nada fosse real. Chamas de proporções desmesuradas que se dissipavam nas nuvens e no céu, estes gigantes faziam com que tudo à sua volta perdesse solidez e estabilidade, o nosso carro incluído, e eu dentro dele. O campo submergia. Eram labaredas frias, concedendo a quem as visse a graça de uma transparência ameaçadora onde nenhum sonho se confundia com a beleza, nem nenhum ritmo com o tempo.
Não foi no entanto senão passado alguns anos que perguntei «o que é aquilo» ao que me responderam «ciprestes» que como era uma palavra nova me manteve na ignorância do que era aquilo e me obrigou a replicar «o que são ciprestes» recebendo então uma resposta categórica «são árvores», com ponto de exclamação, como se eu devesse ter nascido a saber que ciprestes são árvores. O nome era bonito e estranho mas nada me poderia ter espantado mais do que dizerem-me que eram árvores. Árvores como oliveiras e figueiras são árvores. Não me convenceram. Os gigantes talvez fossem assim designados mas eram também outra coisa ou coisas. Uma coisa que eu via.
Maio de 1889, um ano antes de morrer, Vincent Van Gogh pede para ser internado no hospital psiquiátrico de Saint Paul de Mausole, perto de Saint Rémy de Provence, no sul de França. O quarto tem vista para uma paisagem de oliveiras e ciprestes. Trabalha quase em simultâneo em mais de duzentas telas e centenas de desenhos com ciprestes, que frequentemente surgem em primeiro plano e ultrapassam as dimensões da tela. Os tons tornam-se mais frios, o movimento impõe-se agora sobre a cor: o ritmo das pinceladas absorve domínio sobre as relações entre as formas.
Nas cartas, Van Gogh diz que os quadros com ciprestes, searas e olivais representam o calor extremo, muito espesso e fala de uma clareza terrível, que se confunde com a beleza da natureza e o faz perder a consciência de si próprio. Diz que os quadros são sonhos, presságios talvez, cujas conotações simbólicas (compara por exemplo os seus quadros aos trabalhos de Gauguin sobre Cristo no Jardim das Oliveiras), acredito, não são totalmente premeditadas: o cipreste impõe-se, ele apenas cede ao apelo. No instante em que a pintura se forma, não é possível distinguir entre ele e o mundo. A angústia mostra o seu reverso na identificação às coisas, a visão desaparece, a verdade do mundo ordenado dá lugar ao gesto. Entre os ataques de êxtase religioso e o fervor do trabalho, o primordial é mostrar ao mundo que
There is at least something straight from my own heart in them [nos quadros]. What I want to express, in both figure and landscape, isn't anything sentimental or melancholy, but deep anguish. In short, I want to get to the point where people say of my work: that man feels deeply, that man feels keenly. In spite of my so-called coarseness - do you understand? - perhaps even because of it. It seems pretentious to speak this way now, but that is the reason why I want to put all my energies into it. What am I in the eyes of most people - a nonentity, an eccentric or an unpleasant person - somebody who has no position in society and never will have, in short, the lowest of the low.
All right, then - even if that were absolutely true, then I should one day like to show by my work what such an eccentric, such a nobody, has in his heart.
(...).
Though I am often in the depths of misery, there is still calmness, pure harmony and music inside me. I see paintings or drawings in the poorest cottages, in the dirtiest comers. And my mind is driven towards these things with an irresistible momentum.
É também o que me leva a escrever. Quero mostrar o que é aquilo. Talvez nunca consiga.