8 de novembro de 2013

O tempo passou. Não encontro o caminho entre mim e a cidade onde nasci. Tudo o que resta se transformou em memória, cuja trama trabalho ferozmente. E já nada importa. As feridas que pensei nunca sararem, nem cicatriz deixaram, liso como um deserto ficou o corpo.
Vem agora à tona aquilo que amei e sobretudo como amei. A memória delicada daquela certeza, uma única certeza: sair dali. Partir. Há uns dias vi o A. no supermercado, sabendo que o B. tinha morrido há uns dias. Tive vontade de me dirigir a ele e apertar-lhe a mão. E essa vontade tão independente e tão pura transtornou-me. Para explicar isso preciso de dizer: o sítio onde estava deixou de ser um sítio para passar a ser um instante. O incómodo trazido por essa vontade era violento como uma consciência que deixa de dar ordens.
Optar por a viver, o que seria? Uma loucura para os outros ou para mim? Contra todas as minhas forças desenterrou-se em mim um espectro, a lembrança de um homem que conheci, que amava e que sofria. Achei que sabia o que ele estava a sentir, ao mesmo tempo sabendo que não conheço aquela pessoa.
Nesse momento percebi que era eu quem estava viva nessa lembrança. O novelo de uma ligação que pensei ter morrido há muito tempo, vi-o pulsar. Esse amor que nos ligou em adolescentes e me fez esquecer. Quente, íntimo, duradouro. Escrever isto repugna-me.
Encontrei-me numa confusão enorme, sem conseguir fazer o que tinha ido fazer ao supermercado. Tinha a sensação de poder ficar ali retida, retida num pensamento, numa emoção. Dei voltas aos corredores mais perto do local onde ele se encontrava a falar com alguém. Vou ou não apertar-lhe a mão?, a pergunta repetia-se como um grito de socorro. Mais ninguém, absolutamente ninguém para além de nós conhece a história; a decisão, de me devolver o aperto de mão, pertencia-lhe apenas a ele. Seria possível voltar a encontrar esse coração adolescente que vive e sabe o que quer?
Eu ardia. O transtorno avolumava-se com a minha indecisão, fabricada pela incapacidade de distinguir entre a dúvida e o desejo de que ele pudesse retribuir-me um caloroso aperto de mão. Comecei a recordar outras coisas, como uma avalanche. Entre o princípio e o fim, vi-me diante de um enorme fosso temporal que ao invés de revelar mudança congelou tudo nos seus lugares. Incluindo a minha solidão.
Reparei que estava a caminhar repetidamente nos corredores dos iogurtes e gelados. Isso fez-me sorrir. Depois fui-me embora, sem vontade de reparar o irreparável com que me fiz.