21 de outubro de 2013

Março I

Entro no recinto de terra batida de braço dado com a minha mãe. Estou a olhar em frente, vejo primeiro uma feira, mercadores indianos e máquinas de algodão doce, logo depois vejo os carrosséis e atrás os carrinhos de choque. Eu tinha 5, 8, 10, 11 anos. É algures entre um e outro vislumbre que eu me transformo – mas em quê, se aquilo em que eu me transformo sou eu própria. Não sei dizer. O sentimento de lascívia é tão feroz que tenho a tentação de soltar o braço do braço da minha mãe (chego a movê-lo mas detenho-me).
Os feirantes gritam uns com os outros debaixo da música demasiado alta dos carrosséis, não falam com os visitantes. Tudo me atrai. Os carrosséis giram a uma velocidade assustadora. Olho em volta o espectáculo onde acabo de entrar. Um dos carrosséis tem uns assentos que sobem e descem rapidamente girando em volta ao mesmo tempo, cada um leva duas pessoas. As pessoas riem com as cabeças atiradas para trás e os cabelos a serem empurrados pela força do movimento. Lembro-me que andei nele. Uma viagem enfadonha, em que o medo, a vertigem e o enjoo deram lugar a uma angústia insuportável de que não consegui livrar-me nos dias a seguir. Andei uma vez em todos sempre com o mesmo resultado. Nos anos seguintes, sempre que a Feira de Março chegava à cidade, esquivava-me e andava apenas num para justificar a minha ida e disfarçar a minha vontade de falar com os feirantes, a única coisa que me interessava. Entrava numa chávena de chá que rodava sobre si própria enquanto o carrossel girava e serpenteava acima e abaixo num tapete de tábuas cheio de cavalos, Mickey's, comboios, patos. Gostava de ir sozinha. Solto o braço da minha mãe e dirijo-me a esse carrossel. Quero entrar mais fundo nas minhas recordações, quero voltar a entrar na chávena, voltar a entrar em mim. Vejo-a, subo para pisar pelo menos as tábuas brancas no chão. Já sinto os olhares sobre mim, tenho de regressar à minha mãe não a posso envergonhar. O meu esforço para não chamar a atenção é hercúleo, tal como antigamente. A garganta aperta-se-me, chega-me aos ouvidos um arrepio.
Reparo agora que desde que voltei a entrar neste recinto uma das coisas que mais me atrai é o pó. Tudo aqui dentro está imerso no pó que os nossos sapatos levantam, um pó seco, leve e branco. Vendem-se voltas, bilhetes, fichas, algodão doce, pipocas, farturas, e qualquer outra coisa que raramente consigo definir.
Estamos a sair da feira, as lembranças sucedem-se como imagens de um filme e eu começo à procura. Aí estão elas as casas dos feirantes. Casas sobre rodas. Casas onde desejei entrar.


Março II

Piso a lama do recinto da feira. Enquanto observo os sapatos enterrarem-se (primeiro prazer), penso na ironia desta feira vir à cidade precisamente no mês de Março. De um lado, estas tendas cheias de perigos (não falem com os feirantes, recomendação), lama, notas velhas de mão em mão, velocidade, do outro lado a chegada da Primavera, pujante e luminosa.
Assim que chego abandono-me como se tivesse acabado de chegar a uma solidão desejada. A feira dá-me a possibilidade de me iludir: cheguei ao futuro, já não vivo nesta cidade. Passo primeiro pelos mercadores de bugigangas, carrinhos de algodão doce e maçãs do amor, não paro. Tenho uma saia às riscas e uma blusa azul, o cabelo apanhado de lado. Ao meu lado de mão dada comigo vem a minha irmã, mais nova um ano. «Combinaste com alguém?». Mas a resposta dela não é a que espero «Hoje ninguém podia vir.». Faço a pergunta que se segue «Quanto dinheiro tens?». Contamos as moedas, não dará para muito mas sei que ela vai querer andar nos carrinhos de choque. Eu tenho medo, fico cá fora. Em torno da pista, sentados nos bancos, estão os rapazes. Vêm das aldeias e das outras escolas; há também os feirantes que nunca estão parados e são os únicos a circular dentro e fora da pista, gritando uns com os outros por causa do barulho das máquinas e da música e exibindo-se, com a pele queimada. É esse o meu momento. Quero vê-los exibir-se. Não vejo nada de belo em todo o recinto mas partilho com eles a animalidade em mim escondida e neles altiva e admiro-os.
Compramos duas fichas para o carrossel e entramos numa chávena de chá que rodopia sobre si própria. Ao sairmos a minha irmã encontra uma amiga e corre para fora do carrossel. Eu dou a volta para sair pelas escadas e aproveito para ir pela zona onde estão as máquinas, que fazem tudo funcionar. É este o meu local preferido. Podia vir à feira só para ouvir este som. Agachado na lama debaixo das tábuas brancas do carrossel encontro um rapaz sujo que fala com um pequeno cão, amarrado com uma corda pelo pescoço. Olha para mim com indiferença. Volta as costas e segue caminho por entre as carrinhas, eu congelo. Sigo-o com o olhar, perco-o, volto a encontrá-lo. Não quero voltar para casa.