Desde que abri os olhos são incomparavelmente
em maior número as coisas que não percebo do que aquelas que percebo e
perceber não tem a ver com identificação mas sim com uma certa
impassibilidade, que eu penso ser um termo mais justo do que
serenidade, sendo que seria pueril acreditar que só se percebe aquilo
de que se gosta. Depois há as que percebo com esforço, a seguir as que
percebo com paixão e a seguir as que só percebo, de forma tão imediata
que me apetece chamar de natural, tal como é natural respirar e beber
água. E suponho que funcionamos todos mais ou menos do mesmo modo, com
águas de fontes diferentes, de acordo com os nossos padrões e com as
idiossincrasias que não pudermos por de parte.
Por exemplo uma coisa
que me diverte muito sempre que sai um filme do David Lynch são as
conversas das pessoas sobre o seu significado. Na internet aparecem logo
listas intermináveis de fóruns em várias línguas onde se discute cada
cena, se fazem investigações, comparações, algumas bastantes
interessantes, se propõem análises fantasiosas e extra-humanas (isto
existe? Deve existir). Se bem que confesso, também me cansa rapidamente.
Porque aquilo que eu vejo, pelo contrário, é da ordem da revelação, que
é o que não precisa de explicações. Como um sonho a ser sonhado por
muitos. O que me traz ao assunto que me interessa.
Há uma xilogravura de Katsushika Hokusai de cerca de 1820 chamada «O Sonho da Mulher do
Pescador» que representa uma mulher em êxtase sexual
provocado por dois polvos. Existem tantas interpretações sobre ela
quantas forem as cabeças a pensar e eu conheço muito poucas. Tive
conhecimento de algumas numa fase em que já conhecia a imagem há muito
tempo e, tal como acontece com os filmes do Lynch, fui surpreendida
pela intensa divergência de opiniões que causa, porque nunca me senti
questionada por ela. Tenho tantas questões sobre esta imagem como sobre
os desenhos de gatos do mesmo pintor, que são sublimes. Para mim a
imagem é transparente: ela parou de pensar.
O que é o prazer? O que é
o prazer para uma mulher? Como é que uma mulher tem prazer? Quando se
sente validada. Fazer a cama e dobrar a roupa seca conta (não duvidem)
mas não conta tanto quanto identificar quem está atrás dos véus. Diz-se
que para ter prazer as mulheres precisam de se sentir seguras. Concordo.
Mas a segurança não é sobre casas quentes no Inverno e passeios no
Verão. A segurança é sobre atenção, cuidado (palavra rara), respeito e
tempo. A segurança é sobre reconhecimento. Não reconhecimento do seu
valor ou da sua importância (blá, blá, blá) mas reconhecimento da pessoa
que se é. A roupa seca e a cama desfeita são tarefas - e chatas, nunca
acreditei em ninguém que me dissesse que gostava de o fazer -, e o valor
das pessoas numa sociedade pode ser medido pelo que se 'faz' mas para
quem é que aquela pessoa 'existe'?
Uma partilha, qualquer partilha,
é uma existência partilhada. Nada a menos e nada a mais. Por outras
palavras, partilhar não é ser tolerado é ser celebrado.
E é escolher
não ignorar da mesma forma que é escolher não ser ignorado. A mulher do
pescador abandona-se ao prazer puro porque tudo nela é visto e porque
aquele que vê se assume visto. O ver e o ser visto não são unilaterais.
Havia alguém que dizia que ver é iluminar com o olhar. É isso. Se, como
eu acho, ela parou de pensar, é porque alguém chegou ao lugar onde ela
está, atrás dos arbustos com espinhos, e a tocou. Só que alguém teve de
abrir a porta da torre. As mulheres são seres silenciosos mas existir em
silêncio não é o mesmo que não existir. E a grande maioria das mulheres
desiste do seu próprio prazer porque ele não é obtido numa noite de
sexo nem com o companheiro de anos nem com o amante de uma noite. O
prazer de uma mulher é uma coisa vasta que se constrói 24h sobre 24h,
365 dias por ano. Não acontece com um estalar de dedos. A boa notícia é
que a parte técnica aprende-se.
Dito isto assim mal dito, desde que
percebi que a imagem causa reacções fortes nas pessoas que a tenho usado
para as descobrir. E tem sido muito revelador ver o asco, o sobressalto
ou a perturbação que na maioria das vezes causa nos homens. As mulheres
tentam esconder a rapidez com que começam a estudar a volúpia.