19 de outubro de 2013

Desde que abri os olhos são incomparavelmente em maior número as coisas que não percebo do que aquelas que percebo e perceber não tem a ver com identificação mas sim com uma certa impassibilidade, que eu penso ser um termo mais justo do que serenidade, sendo que seria pueril acreditar que só se percebe aquilo de que se gosta. Depois há as que percebo com esforço, a seguir as que percebo com paixão e a seguir as que só percebo, de forma tão imediata que me apetece chamar de natural, tal como é natural respirar e beber água. E suponho que funcionamos todos mais ou menos do mesmo modo, com águas de fontes diferentes, de acordo com os nossos padrões e com as idiossincrasias que não pudermos por de parte.
Por exemplo uma coisa que me diverte muito sempre que sai um filme do David Lynch são as conversas das pessoas sobre o seu significado. Na internet aparecem logo listas intermináveis de fóruns em várias línguas onde se discute cada cena, se fazem investigações, comparações, algumas bastantes interessantes, se propõem análises fantasiosas e extra-humanas (isto existe? Deve existir). Se bem que confesso, também me cansa rapidamente. Porque aquilo que eu vejo, pelo contrário, é da ordem da revelação, que é o que não precisa de explicações. Como um sonho a ser sonhado por muitos. O que me traz ao assunto que me interessa.
Há uma xilogravura  de Katsushika Hokusai
de cerca de 1820 chamada «O Sonho da Mulher do Pescador» que representa uma mulher em êxtase sexual provocado por dois polvos. Existem tantas interpretações sobre ela quantas forem as cabeças a pensar e eu conheço muito poucas. Tive conhecimento de algumas numa fase em que já conhecia a imagem há muito tempo e, tal como acontece com os filmes do Lynch, fui surpreendida pela intensa divergência de opiniões que causa, porque nunca me senti questionada por ela. Tenho tantas questões sobre esta imagem como sobre os desenhos de gatos do mesmo pintor, que são sublimes. Para mim a imagem é transparente: ela parou de pensar.
O que é o prazer? O que é o prazer para uma mulher? Como é que uma mulher tem prazer? Quando se sente validada. Fazer a cama e dobrar a roupa seca conta (não duvidem) mas não conta tanto quanto identificar quem está atrás dos véus. Diz-se que para ter prazer as mulheres precisam de se sentir seguras. Concordo. Mas a segurança não é sobre casas quentes no Inverno e passeios no Verão. A segurança é sobre atenção, cuidado (palavra rara), respeito e tempo. A segurança é sobre reconhecimento. Não reconhecimento do seu valor ou da sua importância (blá, blá, blá) mas reconhecimento da pessoa que se é. A roupa seca e a cama desfeita são tarefas - e chatas, nunca acreditei em ninguém que me dissesse que gostava de o fazer -, e o valor das pessoas numa sociedade pode ser medido pelo que se 'faz' mas para quem é que aquela pessoa 'existe'?
Uma partilha, qualquer partilha, é uma existência partilhada. Nada a menos e nada a mais. Por outras palavras, partilhar não é ser tolerado é ser celebrado.
E é escolher não ignorar da mesma forma que é escolher não ser ignorado. A mulher do pescador abandona-se ao prazer puro porque tudo nela é visto e porque aquele que vê se assume visto. O ver e o ser visto não são unilaterais. Havia alguém que dizia que ver é iluminar com o olhar. É isso. Se, como eu acho, ela parou de pensar, é porque alguém chegou ao lugar onde ela está, atrás dos arbustos com espinhos, e a tocou. Só que alguém teve de abrir a porta da torre. As mulheres são seres silenciosos mas existir em silêncio não é o mesmo que não existir. E a grande maioria das mulheres desiste do seu próprio prazer porque ele não é obtido numa noite de sexo nem com o companheiro de anos nem com o amante de uma noite. O prazer de uma mulher é uma coisa vasta que se constrói 24h sobre 24h, 365 dias por ano. Não acontece com um estalar de dedos. A boa notícia é que a parte técnica aprende-se.
Dito isto assim mal dito, desde que percebi que a imagem causa reacções fortes nas pessoas que a tenho usado para as descobrir. E tem sido muito revelador ver o asco, o sobressalto ou a perturbação que na maioria das vezes causa nos homens. As mulheres tentam esconder a rapidez com que começam a estudar a volúpia.