15 de abril de 2021

8 de março de 2021

Eu quero foder foder foder

Eu quero foder foder / achadamente / se esta revolução / não me deixa foder até morrer / é porque não é revolução nenhuma / a revolução não se faz nas praças nem nos palácios / (essa é a revolução dos fariseus) / a revolução faz-se na casa de banho de casa / da escola / do trabalho / a revolução entre as pessoas deve ser uma troca / hoje é uma relação de poder / (mesmo no poder) / a ceifeira ceifa contente / ceifa nos tempos livres / (semana de 24×7 horas já!) / a gestora avalia a empresa pela casa de banho / e canta contente porque há alegria no trabalho / o choro da bébé não impede a mãe de se vir / a galinha brinca com a raposa / eu tenho o direito de estar triste.

Adília Lopes, Eu quero foder in Florbela Espanca Espanca.

22 de fevereiro de 2021

Quando conhecemos uma pessoa, não devíamos perguntar-lhe o nome. A aproximação seria feita devagar, como se caminhássemos sobre as águas: vigiando o fundo, mas deslizando à superfície. Teríamos tempo para estar desatentos, sem nenhuma pergunta. Se a pessoa voltasse, talvez tivéssemos vontade de conversar mais com ela. Uma palavra após a outra, numa ordem imprevista, chegaria até nós carregada pela melodia de uma voz estrangeira. Pensaríamos que não havia qualquer razão para limitar aquele encontro e como rapidamente poderia transbordar. Porém, ainda, nenhuma pergunta. Cândidas e lentas, como animais a sair da sombra em direção ao primeiro sol, as perguntas viriam apenas depois. Talvez nos perguntássemos como tinha sido possível não nos cruzarmos antes e dificilmente compreenderíamos. Talvez hesitássemos e procurássemos fugir. Pensaríamos como conhecer uma pessoa é feito numa extensão sem limites, que nunca sabemos onde vai terminar. O momento em que se pergunta pelo nome devia ser solene, cheio de cuidado, possuir uma certa ousadia. Imagino que as pessoas se olhassem sempre nos olhos ao fazê-lo. No instante após os conhecermos, logo esquecido, estremeceríamos. Teríamos medo. Agora caminharíamos familiarmente entre os tigres da manhã, atentos e em repouso. E um dia, quando finalmente nos separássemos, os lugares que esse nome houvesse tornado férteis haveriam de continuar a falar connosco.

1 de fevereiro de 2021

hoje, abri uma janela de chat com um amigo e disse-lhe: "tenho vontade de viver". mas que difícil organizar a vontade de fazer tantas coisas e ter de trabalhar para outrem. partir, partir, sempre partir para ver mais mundo, estar mais com os outros, rir mais alto, aprender mais um passo de dança e gastá-lo até cair. não sabemos nada da vida e de nós próprios também hesito em afirmar que possamos saber alguma coisa. vamos de um lado ao outro da alegria e damos com a tristeza, de um lado ao outro da tristeza e damos com a alegria. temos íntimos exóticos devorados pelo silêncio da incerteza e da certeza e avançamos, mas não vamos a lado nenhum. estar aqui é absoluto, temos uma voz, um corpo, e as coisas respondem-nos cheias de bondade, oferecem-nos a qualidade do perigo, do inesperado, onde, como diz o poeta, me tornei hábil a cair verticalmente.

19 de janeiro de 2021

a matilha ladra de madrugada
o teu corpo quente e inesperado
como um tordo num pomar

6 de janeiro de 2021

O sofrimento é interminável
Do fio de ribeiro veloz
A minha mão se afasta.

8 de outubro de 2020

O Poder de Circe

Nunca transformei ninguém em porco.
Algumas pessoas são porcos; faço-os
parecerem-se a porcos.

Estou farta do vosso mundo
que permite que o exterior disfarce o interior.

Os teus homens não eram maus;
uma vida indisciplinada
fez-lhes isso. Como porcos,

sob o meu cuidado
e das minhas ajudantes,
tornaram-se mais dóceis.

Depois reverti o encanto,
mostrando-te a minha boa vontade
e o meu poder. Eu vi

que poderíamos ser aqui felizes,
como o são os homens e as mulheres
de exigências simples. Ao mesmo tempo,

previ a tua partida,
os teus homens, com a minha ajuda, sujeitando
o mar ruidoso e sobressaltado. Pensas

que algumas lágrimas me perturbam? Meu amigo,
toda a feiticeira tem
um coração pragmático; ninguém

vê o essencial que não possa
enfrentar os limites. Se apenas te quisesse ter
podia ter-te aprisionado.

Louise Glück

1 de outubro de 2020

"La main est action : elle prend, elle crée, et parfois on dirait qu’elle pense. (...) La main arrache le toucher à sa passivité réceptive, elle l’organise pour l’expérience et pour l’action. Elle apprend à l’homme à posséder l’étendue, le poids, la densité, le nombre. Créant un univers inédit, elle y laisse
partout son empreinte. Elle se mesure avec la matière qu’elle métamorphose, avec la forme qu’elle transfigure. Éducatrice de l’homme, elle le multiplie dans l’espace et dans le temps."

Henri Focillon, La vie des formes.

17 de setembro de 2020

Nunca se sabe de antemão como alguém vai aprender — que amores tornam alguém bom em latim, por meio de que encontros se é filósofo, em que dicionários se aprende a pensar.

Gilles Deleuze, Diferença e Repetição.

20 de agosto de 2020

There is, Kafka says, ‘plenty of hope, an infinite amount of hope–but not for us.’ There is hope always only for another– and for ‘us’ only when there is, so to speak, no ‘us,’ when ‘we’ stop being ‘ourselves’ and begin to be another. ‘Plenty of hope,’ therefore, ‘but not for us.’

Werner Hamacher, The Gesture in the Name.

30 de junho de 2020

de repente estou lá em cima. o horizonte envolve-me. quando levanto os meus olhos da terra, observo a amplitude à minha volta, discernindo claramente todos os pormenores da paisagem. nomeio-os por instantes, para saborear melhor o meu regozijo: sol, floresta, cidade, gato. assim que decido voltar apenas a observar, o prazer esgotou-se. percebo imediatamente que a descida deverá começar em breve e que não voltarei.

26 de junho de 2020

as flores dos jacarandás caíram
este tempo é teu
atravessamos o rio
alimento-me com a tua juventude
a minha atenção veloz
despede-se dela

25 de junho de 2020

A partir daqui

A partir daqui isto não tem nada a ver contigo.
Sento-me no degrau de uma porta
À espera de alguém,
Mas não espero nada.
Tenho uma reunião daqui a pouco,
Mas não irei.
A minha irmã espera um telefonema meu,
Mas somos estranhas.
A solidão que se apresenta
É imprecisa, extraordinária,
Distribui-se pelo corpo como um formigueiro
E sela o silêncio com o silêncio.
A partir daqui deixas de ter nome
E tudo o que conheço de ti passa a ser incriado,
perfeito e sólido,
sem fim.

24 de junho de 2020

quero sentir-me como um animal selvagem enquanto escrevo.

2 de junho de 2020

No one is born hating another person because of the color of his skin, or his background, or his religion. People must learn to hate, and if they can learn to hate, they can be taught to love, for love comes more naturally to the human heart than its opposite.

Nelson Mandela