30 de outubro de 2017

dia 30 de outubro, 27º às sete e meia da noite que a partir de hoje chega mais cedo, chego a casa e encontro as janelas abertas, provavelmente pela última vez este ano, a roupa seca estendida no cordel hoje pela manhã. sem tirar a roupa nem os sapatos fico a contemplar a serenidade dessa hora enquanto um ligeiro vento quente entra pela casa. nenhum esplendor ali entre o escuro, nenhum símbolo. imóvel diante da janela, agucei a vista na penumbra. a indolência e leveza desta noite fazem lembrar uma história de amor, com a sua alegria e sabores, o seu mergulho no cosmos, a preciosa pressa ao anoitecer e a água parada, levemente pútrida, depois do sexo.
É por essa qualidade de resistência que se tacha de louco quem caminha sem rumo?

Sim, é o que acontece. E por isso o caminhar, como o silêncio, é uma forma de resistência política. No momento de sair de casa, de movimentar-se, você de imediato se vê diante da interferência de critérios utilitaristas que evidenciam perfeitamente aonde você deve ir, por qual caminho e por qual meio. Caminhar porque sim, eliminando da prática qualquer tipo de apreciação útil, com uma intenção decidida de contemplação, implica uma resistência contra esse utilitarismo e, ocasionalmente, também contra o racionalismo, que é o seu principal benfeitor. A marcha lhe permite advertir como é bonita a Catedral, como é brincalhão o gato que se esconde por ali, as cores do pôr-do-sol, sem qualquer finalidade, porque toda sua finalidade é esta: a contemplação do mundo. Frente a um utilitarismo que concebe o mundo como um meio para a produção, o caminhante assimila o mundo que as cidades contêm como um fim em si mesmo. E isso, claro, é contrário à lógica imperante. Daí a vinculação com a loucura.
As coisas mais bonitas do mundo são sombras.

Charles Dickens

27 de outubro de 2017

Les merveilles de la vie de tous les jours sont excitantes ; aucun réalisateur de cinéma ne peut mettre en scène ce que vous voyez dans la rue.

Robert Doisneau

25 de outubro de 2017

parece que sou daquelas pessoas que escreve menos, ou nada, quando lê mais, o que não me agrada porque estraga qualquer rotina possível que a escrita pudesse adquirir. desde que me lembro que procuro adquirir essa rotina. nas alturas em que consigo escrevo todos os dias, no blogue, no diário, num papel qualquer, as ideias sucedem-se intensamente, como uma loucura de que não pudesse dar conta, uma obsessão que, por sinal, é o que de mais próximo conheço da felicidade, ainda que em certos casos seja difícil lidar quer com os temas sobre os quais quero escrever, quer comigo própria, que tantas vezes tenho de domesticar para poder dar lugar à escrita. é espantoso que ainda não tenha desistido e aceitado que sou avessa a uma rotina de trabalho. assim, as manhãs são a minha altura preferida para escrever, embora nunca tenham funcionado para mais nada: no trabalho ou com as pessoas, sou perfeitamente incapaz de funcionar de manhã. tudo se passa como se a escrita tivesse de acontecer fora da lógica do mundo, fora inclusive de qualquer lógica que pretendesse impor-lhe. não é um trabalho, não é uma rotina, mas também não é prazerosa nem automática. está à beira de qualquer coisa, na margem de qualquer coisa, na orla de uma vida para a qual nasço todos os dias e não vivo.

20 de outubro de 2017

uma colega de trabalho ofereceu-me um objeto para fazer xixi de pé. agradeci com algum entusiasmo pois foi uma generosa delicadeza oferecer-me algo, mas sem vontade. não tenho a menor pretensão de fazer xixi de pé nem percebo porque alguma mulher há-de querer fazê-lo. é nestes momentos que me sinto muito pouco feminista, mais próxima das mulheres do campo, perto de onde nasci, para a maioria das quais, pelo menos, a ideia soaria igualmente estapafúrdia. realmente bonita achei uma escultura que vi à beira rio num jardim em Berlim que, opondo-se aos bebés que fazem xixi em todas as fontes, era uma mulher que urinava de cócoras, olhando para o meio das pernas para orientar o fluxo.

17 de outubro de 2017

— No fim de contas o que são as pessoas honestas? São uma consequência, então adeus minha consequência, mulher linda do paraíso.

FRANCISCA, Manoel de Oliveira (1981).

11 de outubro de 2017

«O que é, o que foi, o que será»: porque é que isto não se pode dizer do dia de hoje como, a seu tempo, se dizia de Deus?

Peter Handke, Ensaio sobre o dia conseguido.

8 de outubro de 2017

Quanto mais reparo o que tenho em comum com todos, menos solidário me sinto com quem quer que seja.

Peter Handke, A Hora da Sensação Verdadeira.
tal como a beleza, o silêncio é abundância.

5 de outubro de 2017

rostos com um bronzeado a sumir-se, expressões marcadas — ameaçadoras, entediadas, festivas —, vozes sem nexo, vozes cujo nexo se precipita na rede lá em baixo, em plena escuridão, mas como se no mergulho vissem um campo de margaridas ao sol, uma audição voraz, também ela a sumir-se, jovens ansiosos por se porem ao lado dos poderosos, risos remotos, estranhos, uma pequena vontade que se ignora, uma massa popular que revela vigor, pureza e rudez ao mesmo tempo. no facebook há pessoas que refletem sobre a sua ligação a empresas, denunciando o seu mau funcionamento ou exaltando as suas vantagens de uma forma que roça perigosamente a intimidade. durante a campanha eleitoral são várias as exaltações. descobri um indivíduo que acabava sempre assim as suas frases nos comentários, "CDU a Força Necessária", como um carimbo, mesmo que antes tivesse falado de batatas. «as melhores batatas para assar são as pequenas. CDU a Força Necessária». é disto que a vida se faz. disseram-me «és linda, nunca mudes» e achei tão feio dizerem-me aquilo, porque se está sempre a mudar e o que é lindo numa pessoa não se pode reduzir a uma frase daquelas, extensiva e en passant, é um silêncio que choca contra nós, em bruto, como uma derrocada, na maioria das vezes a partir de um detalhe insignificante, como tropeçar nos próprios pés ou dizer mal daquilo de que toda a gente diz bem. enfim, quando não estou apaixonada pergunto-me como conseguem as pessoas apaixonar-se com tantas idiossincrasias que reunimos, essas coisas chatas que exigem uma enorme capacidade de adaptação, cedências, altruísmo, coragem. mas eu vivo debaixo de uma loucura que não me permite observar a vastidão do tempo e do espaço, que é feita de familiaridades e ingenuidade. só vejo vestígios, eles próprios interrompidos, aos quais sou comovedoramente fiel.
não é possível escrever sobre tudo o que se pensa porque nunca tudo está disponível ao pensamento. é apenas possível criar, com muito talento, pequenas ilusões, imagens contundentes e suficientemente obscuras sobre aquilo que nos passa pela cabeça.

4 de outubro de 2017

Debaixo de um céu estrangeiro
sombras rosas
sombras
sobre terra estrangeira
entre rosas e sombras
dentro de uma água estrangeira
minha sombra

Ingeborg Bachmann