a minha inocência
é impelida
pelo fogo
uma força
no sangue
que sofre
e se lembra
afinal com
uma exatidão
súbita
extraordinária
e inútil
da inevitável
severidade
da ironia
como uma
violenta morte
interior
30 de janeiro de 2016
24 de janeiro de 2016
o deserto é tudo menos um vórtice, disse, como se esperasse não ser ouvido. aqui as nuvens não formam constelações de falsas figuras e o frio vazio é invadido pela impressão cósmica de um tóxico perfume a pinhal. teria que esperar que tudo se desfizesse se realmente queria sair do deserto, a areia, o céu azul, as nuvens, o pinhal, e contudo as mãos, impacientes aranhas prestes a devorar a sua presa, em permanência desenham a inelutável, perfeita, linha do horizonte. se desvanecida ou rompida, a sua trama rapidamente era restabelecida, evidentemente com uma certa candura, a coar a luz do céu. assim mantêm até ao fim o seu segredo, tão finamente tecido que o inferno por vezes se confundia. porém, subitamente, quando pousava a cantar no galho de um pinheiro, um pássaro desfazia o equívoco.
21 de janeiro de 2016
1.
Pindare a écrit dans la deuxième Pythique: Genoi autos essi mathôn. Deviens ce que tu es. Non, ne deviens pas ce que tu es. Ce qui individualise c'est le nom propre, c'est-à-dire le langage où il prend place, c'est-à-dire le contrôle social par la voix intériorisée, c'est-à-dire la servitude sans fin. Ne deviens pas l'esclave des tiens dans le patronyme qu'ils te donnèrent dans la langue collective qu'ils t'enseignèrent. Sans quoi le nom qu'on te donna prendra la place de ta chair.
(...). Ne deviens pas ce que tu es. Ne deviens pas autos. Ne deviens pas idem. Ne cherche pas à être différent des autres car l'envie d'être différent des autres, c'est cela le monde. C'est cela s'adapter aux usages du plus grand nombre et des rivaux. Faire l'intéressant c'est avoir envie d'être identifié. Ne fais pas l'intéressant. Ne t'identifie à rien. Ne deviens pas identique à toi-même. Ne va pas vers toi. Car personne n'est véritablement parvenu au plus impulsif du rythme interne qui le commande, au plus autonome de ce qui vit dans sa vie parce que nous sommes tous des enfants.
Pascal Quignard, La barque silencieuse.
Pindare a écrit dans la deuxième Pythique: Genoi autos essi mathôn. Deviens ce que tu es. Non, ne deviens pas ce que tu es. Ce qui individualise c'est le nom propre, c'est-à-dire le langage où il prend place, c'est-à-dire le contrôle social par la voix intériorisée, c'est-à-dire la servitude sans fin. Ne deviens pas l'esclave des tiens dans le patronyme qu'ils te donnèrent dans la langue collective qu'ils t'enseignèrent. Sans quoi le nom qu'on te donna prendra la place de ta chair.
(...). Ne deviens pas ce que tu es. Ne deviens pas autos. Ne deviens pas idem. Ne cherche pas à être différent des autres car l'envie d'être différent des autres, c'est cela le monde. C'est cela s'adapter aux usages du plus grand nombre et des rivaux. Faire l'intéressant c'est avoir envie d'être identifié. Ne fais pas l'intéressant. Ne t'identifie à rien. Ne deviens pas identique à toi-même. Ne va pas vers toi. Car personne n'est véritablement parvenu au plus impulsif du rythme interne qui le commande, au plus autonome de ce qui vit dans sa vie parce que nous sommes tous des enfants.
Pascal Quignard, La barque silencieuse.
18 de janeiro de 2016
uma escuridão crua. inocente. vejamos, um exemplo.
a moral de um homem. também podia ser cómico, uma coisa que se tenta cautelosamente moldar. cômputo geral pode pensar-se no desejo mas não no amor. as formas coagularam, o desconforto é preponderante. para que é que se evita? uma estranha onda que o silêncio propaga continuamente aquieta a sala vazia. não se sabe nada sobre o pânico, tornou-se um segredo selvagem que se manifesta nas coisas comuns, como uma alvorada em partes. se pelo menos não fosse uma morte negra, sem culpa e tão extravagante, nos teus olhos.
a moral de um homem. também podia ser cómico, uma coisa que se tenta cautelosamente moldar. cômputo geral pode pensar-se no desejo mas não no amor. as formas coagularam, o desconforto é preponderante. para que é que se evita? uma estranha onda que o silêncio propaga continuamente aquieta a sala vazia. não se sabe nada sobre o pânico, tornou-se um segredo selvagem que se manifesta nas coisas comuns, como uma alvorada em partes. se pelo menos não fosse uma morte negra, sem culpa e tão extravagante, nos teus olhos.
15 de janeiro de 2016
Quero ser pouco profunda
Não quero representar e tampouco quero ver outros representar. Também não quero convencer outros a representar. As pessoas não deviam dizer coisas e fingir que estão a viver. Não quero ver essa falsa unidade refletida nos rostos dos atores: a unidade da vida. Não quero ver o jogo de forças deste "músculo bem oleado" (Roland Barthes) — o jogo da linguagem e do movimento, a chamada "expressão" de um ator bem treinado. Não quero que a voz e o movimento encaixem. Algo está a ser revelado no Teatro Hoje — invisivelmente, pois todas as cordas de palco são puxadas atrás da cena. A maquinaria, por outras palavras, está escondida; o ator está rodeado por geringonças, está bem iluminado e vagueia. Absurdamente imita seres humanos. Produz nuances de expressão e tira uma pessoa inteira da boca, uma pessoa cujo destino está a ser definido. Não quero dar vida a pessoas estranhas diante de uma audiência. Não sei, mas de algum modo prefiro não ter nada em palco que tresande a um parto sagrado de algo divino. Não quero teatro. Talvez queira apenas exibir atividades que se podem realizar como a apresentação de alguma coisa, mas sem qualquer significado superior. Os atores deviam dizer algo que ninguém diz nunca, pois isto não é a vida. Deviam mostrar trabalho. Deviam dizer o que está a acontecer, mas ninguém poderia nunca afirmar que dentro deles se passa algo completamente diferente, algo que apenas se pudesse ler indiretamente nos seus rostos ou nos seus corpos. Os civis deviam dizer alguma coisa em palco.
Um desfile de moda talvez — durante o qual as mulheres dizem frases nas suas roupas. Quero ser superficial!
Um desfile de moda, porque aí também se pode usar apenas as roupas. Livrar-se de seres humanos que pudessem fabricar uma relação sistemática com alguma personagem inventada! Como roupas, estão a ouvir? As roupas também não têm a sua própria forma. Têm de ser derramadas sobre corpos que SÃO a sua forma. Murchas e negligenciadas estão estas capas suspensas, mas subitamente alguém entra nelas, alguém que fala como o meu santo favorito, e que existe apenas porque eu existo: eu e aquela que é suposto eu ser — não apareceremos mais em palco.
Nem individualmente nem juntas. Olhem bem para mim! Nunca mais me verão! Lastimem! Lastimem agora. Santo, santo, santo. Quem, afinal, seria capaz de dizer que personagens deviam dizer o quê num teatro. Quaisquer que alinhe umas com as outras; mas quem é quem? Não conheço estas pessoas! Qualquer uma delas podia ser outra pessoa, e podia ser representada por uma terceira parte idêntica a uma quarta, sem que ninguém percebesse. Um homem diz. A mulher diz. Um cavalo vai ao dentista e diz uma piada. Não, não quero conhecê-lo. Adeus!
Elfriede Jelinek
14 de janeiro de 2016
13 de janeiro de 2016
1.
SUNA NO ONNA [A mulher da areia], Kōbō Abe (1964).
2.
Os aborígenes de ambos os sexos desenham na areia quando falam ou argumentam. Mas não da mesma maneira. Os homens parecem ocasionalmente colocar uma transparência de retroprojector na areia, para ilustrar um determinado ponto da apresentação. Os homens usam a imagem como um armazém de conhecimentos, que também está disponível noutras formas. A imagem pode ser desdobrada verbalmente e as palavras podem depois ser de novo enredadas numa imagem.
As mulheres, por outro lado, desenham um fluxo de imagens a que Munn chama «estenografia contínua». As mulheres Warlpiri fizeram da narrativa associada a estas imagens uma arte própria: djugurba, o conto da areia.
O conto da areia consiste num murmúrio rítmico de palavras acompanhado de gestos que explicam qual é a essência do conto: uma espécie de coreografia manual na areia. São os movimentos da mão quando esta molda as imagens que representam o enredo real do conto. É a própria terra que «tem» o conto, a mão só o realiza na areia, antes de a terra o retomar de novo.
«E viveram felizes para sempre.» É assim que os nossos contos costumam terminar. Mas os contos da areia do povo Warlipiri terminam com todos a desaparecer na areia. A narradora desenha um círculo e deixa que cada figura do conto entre nele e desapareça no solo. As palavras proferidas no momento do desaparecimento são sempre as mesmas: lawa-djari-dja-lgu — «e assim se tornaram nada».
A maioria das mulheres Warlpiri tem todo um repertório destes contos que representam com mímica, voz, palavras, gestos e sinais na areia. Qualquer menina de oito ou nove anos pode inventar um conto da areia e representá-lo. Pode contá-lo a outras meninas e meninos mais novos. Um rapaz mais velho, por outro lado, não ouve os contos da areia, porque pertencem à esfera feminina.
Nos contos da areia, são comuns os vestígios de animais e de seres humanos. Os rastos são feitos com as mãos, em posições diferentes, obtendo traços de aves, animais e seres humanos. Fazer estes traços é uma brincadeira que os adultos praticam muitas vezes com as crianças. A arte de rastrear as presas era, obviamente, de grande importância para os meios de subsistência tradicionais dos povos do deserto. Mas ainda mais importantes são as pegadas e outros vestígios que o corpo deixa no terreno como intersecções entre o homem e a terra.
Sven Lindqvist, Terra Nullius.
SUNA NO ONNA [A mulher da areia], Kōbō Abe (1964).
2.
Os aborígenes de ambos os sexos desenham na areia quando falam ou argumentam. Mas não da mesma maneira. Os homens parecem ocasionalmente colocar uma transparência de retroprojector na areia, para ilustrar um determinado ponto da apresentação. Os homens usam a imagem como um armazém de conhecimentos, que também está disponível noutras formas. A imagem pode ser desdobrada verbalmente e as palavras podem depois ser de novo enredadas numa imagem.
As mulheres, por outro lado, desenham um fluxo de imagens a que Munn chama «estenografia contínua». As mulheres Warlpiri fizeram da narrativa associada a estas imagens uma arte própria: djugurba, o conto da areia.
O conto da areia consiste num murmúrio rítmico de palavras acompanhado de gestos que explicam qual é a essência do conto: uma espécie de coreografia manual na areia. São os movimentos da mão quando esta molda as imagens que representam o enredo real do conto. É a própria terra que «tem» o conto, a mão só o realiza na areia, antes de a terra o retomar de novo.
«E viveram felizes para sempre.» É assim que os nossos contos costumam terminar. Mas os contos da areia do povo Warlipiri terminam com todos a desaparecer na areia. A narradora desenha um círculo e deixa que cada figura do conto entre nele e desapareça no solo. As palavras proferidas no momento do desaparecimento são sempre as mesmas: lawa-djari-dja-lgu — «e assim se tornaram nada».
A maioria das mulheres Warlpiri tem todo um repertório destes contos que representam com mímica, voz, palavras, gestos e sinais na areia. Qualquer menina de oito ou nove anos pode inventar um conto da areia e representá-lo. Pode contá-lo a outras meninas e meninos mais novos. Um rapaz mais velho, por outro lado, não ouve os contos da areia, porque pertencem à esfera feminina.
Nos contos da areia, são comuns os vestígios de animais e de seres humanos. Os rastos são feitos com as mãos, em posições diferentes, obtendo traços de aves, animais e seres humanos. Fazer estes traços é uma brincadeira que os adultos praticam muitas vezes com as crianças. A arte de rastrear as presas era, obviamente, de grande importância para os meios de subsistência tradicionais dos povos do deserto. Mas ainda mais importantes são as pegadas e outros vestígios que o corpo deixa no terreno como intersecções entre o homem e a terra.
Sven Lindqvist, Terra Nullius.
11 de janeiro de 2016
In the villa of Ormen, in the villa of Ormen
Stands a solitary candle, ah-ah, ah-ah
In the centre of it all, in the centre of it all
Your eyes
On the day of execution, on the day of execution
Only women kneel and smile, ah-ah, ah-ah
At the centre of it all, at the centre of it all
Your eyes, your eyes
Ah-ah-ah
Ah-ah-ah
In the villa of Ormen, in the villa of Ormen
Stands a solitary candle, ah-ah, ah-ah
In the centre of it all, in the centre of it all
Your eyes
Ah-ah-ah
Something happened on the day he died
Spirit rose a metre and stepped aside
Somebody else took his place, and bravely cried
(I’m a blackstar, I’m a blackstar)
How many times does an angel fall?
How many people lie instead of talking tall?
He trod on sacred ground, he cried loud into the crowd
(I’m a blackstar, I’m a blackstar, I’m not a gangster)
I can’t answer why (I’m a blackstar)
Just go with me (I’m not a filmstar)
I’m-a take you home (I’m a blackstar)
Take your passport and shoes (I’m not a popstar)
And your sedatives, boo (I’m a blackstar)
You’re a flash in the pan (I’m not a marvel star)
I’m the great I am (I’m a blackstar)
I’m a blackstar, way up, oh honey, I’ve got game
I see right so white, so open-heart it’s pain
I want eagles in my daydreams, diamonds in my eyes
(I’m a blackstar, I’m a blackstar)
Something happened on the day he died
Spirit rose a metre and stepped aside
Somebody else took his place, and bravely cried
(I’m a blackstar, I’m a star star, I’m a blackstar)
I can’t answer why (I’m not a gangster)
But I can tell you how (I’m not a flam star)
We were born upside-down (I’m a star star)
Born the wrong way ‘round (I’m not a white star)
(I’m a blackstar, I’m not a gangster
I’m a blackstar, I’m a blackstar
I’m not a pornstar, I’m not a wandering star
I’m a blackstar, I’m a blackstar)
In the villa of Ormen stands a solitary candle
Ah-ah, ah-ah
At the centre of it all, your eyes
On the day of execution, only women kneel and smile
Ah-ah, ah-ah
At the centre of it all, your eyes, your eyes
Ah-ah-ah
8 de janeiro de 2016
7 de janeiro de 2016
1.
é evidente que estou numa situação particular. uma muralha enorme transformou a minha memória e o meu afeto. nunca serei senão uma criança, cuja linguagem, pobre e desarticulada, e cujos gestos, desajeitados e ineptos, provocam graça. com grande espanto, o meu corpo foi despejado no mundo. espanto:
1. Impressão forte causada por coisa inesperada e repentina. = ASSOMBRO, CONSTERNAÇÃO, MARAVILHA, PASMO, SURPRESA
2. Sensação de grande medo. = SUSTO
"espanto", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/espanto [consultado em 07-01-2016].
não posso desembaraçar-me de certos gestos antiquados mas olhei para os olhos de alguns seres semelhantes a mim, que de volta olharam para mim. a zombaria esvazia-me mas isso deixa-me contente. o lugar onde caí é seco, frio, vasto, e o meu olhar é tão frágil que fatalmente me deparei com os nomes das coisas. e os nomes deixaram-me em silêncio. catapultada na minha própria intimidade, onde admiro as mais belas nuvens e montanhas e também as mais vis, esfomeadas, bestas, deixei de sonhar. mas a alegria deixa sequelas inultrapassáveis: ela é o trauma. acredito que nem mesmo a morte provoca danos tão insuportáveis, pois o tempo cuida da memória. a alegria porém não é coisa que fique guardada na memória, pois é da natureza da deflagração e da voragem, e estas são inextinguíveis, ou seja, não têm princípio nem têm fim. é essa imensidão que protejo.
6 de janeiro de 2016
2.
Em alguma sexta-feira de 2015, eu acordei mais cedo do que o costume para terminar de preparar a aula. Pra variar, estava atrasado - com filho pequeno, a gente tá sempre atrasado, mais do que o sempre-estar-atrasado normal. Tomei café, sentei na mesa e assim que comecei a trabalhar, o C. acordou no quarto do lado. Por um curto instante, pensei em deixar que a F. acordasse e tomasse conta dele, mas logo tomei vergonha na cara e percebi que não era questão de "tomar conta". Peguei ele no colo, e o levei ao trocador para trocar sua fralda. A sua expressão de felicidade por estar comigo, por alguém querido estar compartilhando sua presença, era imensa e contrastava com meu mau humor matinal de costume. Ao ver que essa expressão transbordava por todo o seu corpo, ou melhor, ao senti-la, fui contaminado por ela. Diante dela, eu só conseguia pensar e sussurrar (para não acordar a F., deixando-a descansar ao menos cinco minutos a mais) "que alegria!, que alegria!", ao que ele respondia gesticulando jubilosamente os braços e as pernas, de corpo inteiro, com um sorriso do tamanho do mundo, que continha o mundo inteiro, que até mesmo o mundo era incapaz de conter. Naquele momento, senti e compreendi o que era o êxtase, e naquele momento C. me ensinou que a vida não é o conjunto de funções que resiste à morte, mas a disseminação da alegria (a única prova dos nove), um afeto que nunca se limita a si, que emana do sujeito e o faz sair de si, o afeto que expressa o amar, verbo transitivo, pois nos coloca sempre em trânsito, movimento em direção ao mundo que é o contrário da morte com sua fixidez, que é capaz inclusive de sobre-viver à morte: um vagamundear, outro nome para a vida.
Alexandre Nodari, publicado no facebook a 7 de janeiro de 2016, 22:15.
é evidente que estou numa situação particular. uma muralha enorme transformou a minha memória e o meu afeto. nunca serei senão uma criança, cuja linguagem, pobre e desarticulada, e cujos gestos, desajeitados e ineptos, provocam graça. com grande espanto, o meu corpo foi despejado no mundo. espanto:
1. Impressão forte causada por coisa inesperada e repentina. = ASSOMBRO, CONSTERNAÇÃO, MARAVILHA, PASMO, SURPRESA
2. Sensação de grande medo. = SUSTO
"espanto", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/espanto [consultado em 07-01-2016].
não posso desembaraçar-me de certos gestos antiquados mas olhei para os olhos de alguns seres semelhantes a mim, que de volta olharam para mim. a zombaria esvazia-me mas isso deixa-me contente. o lugar onde caí é seco, frio, vasto, e o meu olhar é tão frágil que fatalmente me deparei com os nomes das coisas. e os nomes deixaram-me em silêncio. catapultada na minha própria intimidade, onde admiro as mais belas nuvens e montanhas e também as mais vis, esfomeadas, bestas, deixei de sonhar. mas a alegria deixa sequelas inultrapassáveis: ela é o trauma. acredito que nem mesmo a morte provoca danos tão insuportáveis, pois o tempo cuida da memória. a alegria porém não é coisa que fique guardada na memória, pois é da natureza da deflagração e da voragem, e estas são inextinguíveis, ou seja, não têm princípio nem têm fim. é essa imensidão que protejo.
6 de janeiro de 2016
2.
Em alguma sexta-feira de 2015, eu acordei mais cedo do que o costume para terminar de preparar a aula. Pra variar, estava atrasado - com filho pequeno, a gente tá sempre atrasado, mais do que o sempre-estar-atrasado normal. Tomei café, sentei na mesa e assim que comecei a trabalhar, o C. acordou no quarto do lado. Por um curto instante, pensei em deixar que a F. acordasse e tomasse conta dele, mas logo tomei vergonha na cara e percebi que não era questão de "tomar conta". Peguei ele no colo, e o levei ao trocador para trocar sua fralda. A sua expressão de felicidade por estar comigo, por alguém querido estar compartilhando sua presença, era imensa e contrastava com meu mau humor matinal de costume. Ao ver que essa expressão transbordava por todo o seu corpo, ou melhor, ao senti-la, fui contaminado por ela. Diante dela, eu só conseguia pensar e sussurrar (para não acordar a F., deixando-a descansar ao menos cinco minutos a mais) "que alegria!, que alegria!", ao que ele respondia gesticulando jubilosamente os braços e as pernas, de corpo inteiro, com um sorriso do tamanho do mundo, que continha o mundo inteiro, que até mesmo o mundo era incapaz de conter. Naquele momento, senti e compreendi o que era o êxtase, e naquele momento C. me ensinou que a vida não é o conjunto de funções que resiste à morte, mas a disseminação da alegria (a única prova dos nove), um afeto que nunca se limita a si, que emana do sujeito e o faz sair de si, o afeto que expressa o amar, verbo transitivo, pois nos coloca sempre em trânsito, movimento em direção ao mundo que é o contrário da morte com sua fixidez, que é capaz inclusive de sobre-viver à morte: um vagamundear, outro nome para a vida.
Alexandre Nodari, publicado no facebook a 7 de janeiro de 2016, 22:15.
6 de janeiro de 2016
5 de janeiro de 2016
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