1.
é evidente que estou numa situação particular. uma muralha enorme
transformou a minha memória e o meu afeto. nunca serei senão uma
criança, cuja linguagem, pobre e desarticulada, e cujos gestos,
desajeitados e ineptos, provocam graça. com grande espanto, o meu corpo
foi despejado no mundo. espanto:
1. Impressão forte causada por coisa inesperada e repentina. = ASSOMBRO, CONSTERNAÇÃO, MARAVILHA, PASMO, SURPRESA
2. Sensação de grande medo. = SUSTO
"espanto",
in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013,
http://www.priberam.pt/dlpo/espanto [consultado em 07-01-2016].
não
posso desembaraçar-me de certos gestos antiquados mas olhei para os
olhos de alguns seres semelhantes a mim, que de volta olharam para mim. a
zombaria esvazia-me mas isso deixa-me contente. o lugar onde caí é
seco, frio, vasto, e o meu olhar é tão frágil que fatalmente me deparei
com os nomes das coisas. e os nomes deixaram-me em silêncio. catapultada
na minha própria intimidade, onde admiro as mais belas nuvens e
montanhas e também as mais vis, esfomeadas, bestas, deixei de sonhar.
mas a alegria deixa sequelas inultrapassáveis: ela é o trauma. acredito
que nem mesmo a morte provoca danos tão insuportáveis, pois o tempo
cuida da memória. a alegria porém não é coisa que fique guardada na
memória, pois é da natureza da deflagração e da voragem, e estas são
inextinguíveis, ou seja, não têm princípio nem têm fim. é essa imensidão
que protejo.
6 de janeiro de 2016
2.
Em alguma sexta-feira de 2015, eu acordei mais cedo do que o costume
para terminar de preparar a aula. Pra variar, estava atrasado - com
filho pequeno, a gente tá sempre atrasado, mais do que o
sempre-estar-atrasado normal. Tomei café, sentei na mesa e assim que
comecei a trabalhar, o C. acordou no quarto do lado. Por um curto
instante, pensei em deixar que a F. acordasse e tomasse conta dele, mas logo tomei vergonha na cara e percebi que não era questão de "tomar
conta". Peguei ele no colo, e o levei ao trocador para trocar sua
fralda. A sua expressão de felicidade por estar comigo, por alguém
querido estar compartilhando sua presença, era imensa e contrastava com
meu mau humor matinal de costume. Ao ver que essa expressão transbordava
por todo o seu corpo, ou melhor, ao senti-la, fui contaminado por ela.
Diante dela, eu só conseguia pensar e sussurrar (para não acordar a
F., deixando-a descansar ao menos cinco minutos a mais) "que
alegria!, que alegria!", ao que ele respondia gesticulando jubilosamente
os braços e as pernas, de corpo inteiro, com um sorriso do tamanho do
mundo, que continha o mundo inteiro, que até mesmo o mundo era incapaz
de conter. Naquele momento, senti e compreendi o que era o êxtase, e
naquele momento C. me ensinou que a vida não é o conjunto de
funções que resiste à morte, mas a disseminação da alegria (a única
prova dos nove), um afeto que nunca se limita a si, que emana do sujeito
e o faz sair de si, o afeto que expressa o amar, verbo transitivo, pois
nos coloca sempre em trânsito, movimento em direção ao mundo que é o
contrário da morte com sua fixidez, que é capaz inclusive de sobre-viver
à morte: um vagamundear, outro nome para a vida.
Alexandre Nodari, publicado no facebook a 7 de janeiro de 2016, 22:15.