7 de janeiro de 2016

1.

é evidente que estou numa situação particular. uma muralha enorme transformou a minha memória e o meu afeto. nunca serei senão uma criança, cuja linguagem, pobre e desarticulada, e cujos gestos, desajeitados e ineptos, provocam graça. com grande espanto, o meu corpo foi despejado no mundo. espanto:

1. Impressão forte causada por coisa inesperada e repentina. = ASSOMBRO, CONSTERNAÇÃO, MARAVILHA, PASMO, SURPRESA
2. Sensação de grande medo. = SUSTO

"espanto", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/espanto [consultado em 07-01-2016].

não posso desembaraçar-me de certos gestos antiquados mas olhei para os olhos de alguns seres semelhantes a mim, que de volta olharam para mim. a zombaria esvazia-me mas isso deixa-me contente. o lugar onde caí é seco, frio, vasto, e o meu olhar é tão frágil que fatalmente me deparei com os nomes das coisas. e os nomes deixaram-me em silêncio. catapultada na minha própria intimidade, onde admiro as mais belas nuvens e montanhas e também as mais vis, esfomeadas, bestas, deixei de sonhar. mas a alegria deixa sequelas inultrapassáveis: ela é o trauma. acredito que nem mesmo a morte provoca danos tão insuportáveis, pois o tempo cuida da memória. a alegria porém não é coisa que fique guardada na memória, pois é da natureza da deflagração e da voragem, e estas são inextinguíveis, ou seja, não têm princípio nem têm fim. é essa imensidão que protejo.

6 de janeiro de 2016


2.

Em alguma sexta-feira de 2015, eu acordei mais cedo do que o costume para terminar de preparar a aula. Pra variar, estava atrasado - com filho pequeno, a gente tá sempre atrasado, mais do que o sempre-estar-atrasado normal. Tomei café, sentei na mesa e assim que comecei a trabalhar, o C. acordou no quarto do lado. Por um curto instante, pensei em deixar que a F. acordasse e tomasse conta dele, mas logo tomei vergonha na cara e percebi que não era questão de "tomar conta". Peguei ele no colo, e o levei ao trocador para trocar sua fralda. A sua expressão de felicidade por estar comigo, por alguém querido estar compartilhando sua presença, era imensa e contrastava com meu mau humor matinal de costume. Ao ver que essa expressão transbordava por todo o seu corpo, ou melhor, ao senti-la, fui contaminado por ela. Diante dela, eu só conseguia pensar e sussurrar (para não acordar a F., deixando-a descansar ao menos cinco minutos a mais) "que alegria!, que alegria!", ao que ele respondia gesticulando jubilosamente os braços e as pernas, de corpo inteiro, com um sorriso do tamanho do mundo, que continha o mundo inteiro, que até mesmo o mundo era incapaz de conter. Naquele momento, senti e compreendi o que era o êxtase, e naquele momento C. me ensinou que a vida não é o conjunto de funções que resiste à morte, mas a disseminação da alegria (a única prova dos nove), um afeto que nunca se limita a si, que emana do sujeito e o faz sair de si, o afeto que expressa o amar, verbo transitivo, pois nos coloca sempre em trânsito, movimento em direção ao mundo que é o contrário da morte com sua fixidez, que é capaz inclusive de sobre-viver à morte: um vagamundear, outro nome para a vida.

Alexandre Nodari, publicado no facebook a 7 de janeiro de 2016, 22:15.