28 de maio de 2012
13 de maio de 2012
As primeiras imagens são sempre da infância. Eu percorria um caminho
de terra, com árvores e trepadeiras a tapar o céu. Do outro lado do
caminho ficava a estrada, o alcatrão sem princípio nem fim, nenhuma
árvore, todo o perigo do mundo. Atravessava o caminho de bicicleta e
assim que entrava não ouvia mais nada a não ser o palpitar do meu
coração, o latejar do calor sobre a minha pele e o vento investindo nas
folhas, levantando o pó. Ou então eram as minhas mãos enterrarem-se na
terra e o tempo a ver as formigas carregarem coisas para dentro de um
buraco. Havia um pinheiro, tão grande que teve de nascer muito longe
para poder crescer tanto e à sombra do qual nós fazíamos piqueniques e
comíamos pinhões uma vez por ano. No caminho havia marmelos e amoras; os
marmelos não se apanhavam, as amoras comiam-se quentes.
O espaço do mundo com que o meu corpo entrava em contacto era voraz, enigmático, um pouco frio. Ficava a ler atrás das portas e evitava o contacto humano. A minha irmã protegia-me. Durante muito tempo senti que era a única pessoa a proteger-me (de alguma coisa). Éramos duas cabeças que pensavam a uma voz. A paisagem da Serra diante da casa da minha avó. Os dedos da minha avó, redondos e macios, a afastarem-me os cabelos ao sol para matar os piolhos. Uma casa muito limpa ainda assim um labirinto que eu percorria com a minha irmã. A Serra a arder todo o dia e toda a noite. As cigarras que não me deixavam dormir e me faziam sentir muito só. Um sapato perdido a caminho de casa sem que eu soubesse explicar como.
Estas imagens da infância, o que são? Não dizem nada, não trazem nenhuma história com elas, nenhuma poesia. Imagens dilacerantes e perfeitas, imagens que são o que são.
Mas de onde vem esse vazio que as cristalizou? O que me importa saber: trata-se de um vazio que se formou através delas ou um vazio que já existia antes delas próprias de formarem? Não procuro a resposta psicológica que corresponde sem excepção ao pai e à mãe nem tão pouco, muito embora sejam memórias, à que procura desconstruir e sublimar uma identidade pessoal. Eu pergunto sobre o espaço puro que elas ocupam. Porque estas imagens constituem uma geometria pessoal mais profunda do que todo o conjunto de todas as minhas vivências: para lá de todas as outras, são as imagens que estão no início da escrita. Que por ela se erguem e a convocam, insistentemente, como os olhos de um gato, que te vê, quando estás perdido à noite. A mim regressam em todos os princípios, como cenários de uma guerra surda de onde terei de me subtrair.
O espaço do mundo com que o meu corpo entrava em contacto era voraz, enigmático, um pouco frio. Ficava a ler atrás das portas e evitava o contacto humano. A minha irmã protegia-me. Durante muito tempo senti que era a única pessoa a proteger-me (de alguma coisa). Éramos duas cabeças que pensavam a uma voz. A paisagem da Serra diante da casa da minha avó. Os dedos da minha avó, redondos e macios, a afastarem-me os cabelos ao sol para matar os piolhos. Uma casa muito limpa ainda assim um labirinto que eu percorria com a minha irmã. A Serra a arder todo o dia e toda a noite. As cigarras que não me deixavam dormir e me faziam sentir muito só. Um sapato perdido a caminho de casa sem que eu soubesse explicar como.
Estas imagens da infância, o que são? Não dizem nada, não trazem nenhuma história com elas, nenhuma poesia. Imagens dilacerantes e perfeitas, imagens que são o que são.
Mas de onde vem esse vazio que as cristalizou? O que me importa saber: trata-se de um vazio que se formou através delas ou um vazio que já existia antes delas próprias de formarem? Não procuro a resposta psicológica que corresponde sem excepção ao pai e à mãe nem tão pouco, muito embora sejam memórias, à que procura desconstruir e sublimar uma identidade pessoal. Eu pergunto sobre o espaço puro que elas ocupam. Porque estas imagens constituem uma geometria pessoal mais profunda do que todo o conjunto de todas as minhas vivências: para lá de todas as outras, são as imagens que estão no início da escrita. Que por ela se erguem e a convocam, insistentemente, como os olhos de um gato, que te vê, quando estás perdido à noite. A mim regressam em todos os princípios, como cenários de uma guerra surda de onde terei de me subtrair.
6 de maio de 2012
5 de maio de 2012
Perguntei há dias a um médico porque razão as mortes são sempre em maior número na altura da primavera. Respondeu-me que apesar das inúmeras pesquisas que continuam a ser feitas sobre esse assunto, não existe nenhuma conclusão. Contudo uma das hipóteses apontadas mais frequentemente diz respeito às
mudanças que ocorrem a nível do campo magnético da terra que, entre
outras coisas, serve por exemplo para os animais se orientarem nas suas
migrações. Qualquer coisa muito recalcado no meu cérebro cristão
deve ter feito ricochete, porque a poesia da ideia apaziguou-me
ligeiramente: almas migrando para sítios mais verdejantes, and so on and
so on. O corpo sabe sempre mais do que a razão.
19 de abril de 2012
29 de janeiro de 2012
A primeira coisa que disse quando nasci, ainda nas mãos da parteira foi:
«Mãe quero ir para Lisboa.»
Durante os primeiros 18 anos, Lisboa foi uma palavra
e um objetivo.
Ainda hoje,
o que mais me emociona no Casablanca
é essa palavra.
Lisboa é muito simples.
Os sítios de que gostamos mais vão variando, consoante a distância a que estamos deles.
Eu por exemplo gosto muito de um sítio onde nunca fui.
Um sítio
onde
ainda
nunca fui.
Vivi em quase todos os bairros da cidade.
Gosto dos contrastes de Lisboa.
No verão, o cheiro a laranjas é tão forte que se confunde com o cheiro a alcatrão.
Há uns anos, depois de passar pelo trânsito da Avenida da República e da Praça de Espanha, atravessava Monsanto;
via esquilos atravessar a estrada
e grupos de cavalos entrar no nevoeiro.
Este ano celebro 18 anos de vida em Lisboa.
Tantos quantos os que vivi na cidade onde nasci.
Falo agora dela como se fosse minha, como de uma amante, e esqueço frequentemente que nunca somos totalmente preenchidos pelas coisas que amamos.
Lisboa, janeiro de 2012.
Texto para Drifting/Em Deriva, de Gustavo Ciríaco e António Pedro Lopes.
«Mãe quero ir para Lisboa.»
Durante os primeiros 18 anos, Lisboa foi uma palavra
e um objetivo.
Ainda hoje,
o que mais me emociona no Casablanca
é essa palavra.
Lisboa é muito simples.
Os sítios de que gostamos mais vão variando, consoante a distância a que estamos deles.
Eu por exemplo gosto muito de um sítio onde nunca fui.
Um sítio
onde
ainda
nunca fui.
Vivi em quase todos os bairros da cidade.
Gosto dos contrastes de Lisboa.
No verão, o cheiro a laranjas é tão forte que se confunde com o cheiro a alcatrão.
Há uns anos, depois de passar pelo trânsito da Avenida da República e da Praça de Espanha, atravessava Monsanto;
via esquilos atravessar a estrada
e grupos de cavalos entrar no nevoeiro.
Este ano celebro 18 anos de vida em Lisboa.
Tantos quantos os que vivi na cidade onde nasci.
Falo agora dela como se fosse minha, como de uma amante, e esqueço frequentemente que nunca somos totalmente preenchidos pelas coisas que amamos.
Lisboa, janeiro de 2012.
Texto para Drifting/Em Deriva, de Gustavo Ciríaco e António Pedro Lopes.
28 de janeiro de 2012
16 de dezembro de 2011
9 de fevereiro de 2011
a colher cai sobre a mesa
uma mancha de água cinzenta alastra na toalha
uma gota aloja-se na minha pele
mergulho
sabe ao mar dos dias
onde viajo numa escuridão insuficiente
intrigada por todas as que sou
falo
pronuncio um só nome para seduzir
desprendida e morta, já morta
mantenho o chá sobre a mesa.
uma mancha de água cinzenta alastra na toalha
uma gota aloja-se na minha pele
mergulho
sabe ao mar dos dias
onde viajo numa escuridão insuficiente
intrigada por todas as que sou
falo
pronuncio um só nome para seduzir
desprendida e morta, já morta
mantenho o chá sobre a mesa.
12 de janeiro de 2011
Uma língua sem linguagem
A vaga assome e eu procuro por toda a parte a forma que cresce em mim e cuja força se estende no espaço muito para além de mim, muito para além da casa, das ruas, da cidade e cria um outro mundo para além do tangível e inteligível. Sou uma vaga de labaredas poderosas que ninguém senão os loucos sabe navegar. Remonto do primeiro mergulho e vejo o meu corpo transformar-se rapidamente nesse animal sedutor que caminha entre os destroços vivos dos poetas, repetidos até à exaustão. Oiço tudo, vejo tudo. A rapidez da vida absorvendo cada instante não-vivido para a morte. Eu não morro, já morri, agora sou apenas o instante, veloz como ela, e em breve não me restará outra língua para além do grito que ninguém poderá ouvir.
A vaga assome e eu procuro por toda a parte a forma que cresce em mim e cuja força se estende no espaço muito para além de mim, muito para além da casa, das ruas, da cidade e cria um outro mundo para além do tangível e inteligível. Sou uma vaga de labaredas poderosas que ninguém senão os loucos sabe navegar. Remonto do primeiro mergulho e vejo o meu corpo transformar-se rapidamente nesse animal sedutor que caminha entre os destroços vivos dos poetas, repetidos até à exaustão. Oiço tudo, vejo tudo. A rapidez da vida absorvendo cada instante não-vivido para a morte. Eu não morro, já morri, agora sou apenas o instante, veloz como ela, e em breve não me restará outra língua para além do grito que ninguém poderá ouvir.
10 de dezembro de 2010
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