13 de junho de 2024

"Com a chegada de Francisco Fanhais ao colégio onde eu estudava, muito começou a mudar na minha vida. Por essa altura, embora muito pouco esclarecido, não era de todo uma pessoa que passasse à margem do que este país era. O colégio tinha alunos externos e internos. De início, poucos apareciam nessas aulas dadas num anfiteatro do colégio, de canto coral, ao sábado e facultativas. Alguns internos começaram a ir e depressa o interesse se espalhou entre nós, os externos. Decidi ir espreitar. Éramos poucos. Mas passadas duas ou três semanas, o anfiteatro era pequeno para acolher tantos que ali chegávamos. O nome de canto coral era apenas um nome. As aulas que ele dava constavam na sua totalidade de canções que ele cantava. Na altura tinha uma paixão por espirituais negros. O Fanhais falava connosco sobre alguns desses espirituais e explicava-nos o seu significado que, muitas vezes, estava à vista. Mas ele lá nos ia contando. Depois, perguntou se alguém sabia tocar viola. Eu fui um dos que disse que sim e então começou a surgir uma comunhão entre professor e alunos. O tempo passou, alguns deixaram de aparecer, mas, os que ficaram, tiveram de igual modo o privilégio de começar a ouvir e a tocar cantigas do Zeca Afonso e de outros cantores dessa época. Cantigas absolutamente proibidas pelo regime fascista. Aí começou de facto uma grande transformação em mim. Comecei a ler livros proibidos que conseguia arranjar através de um amigo cujo pai era conhecido por ser oposicionista ao regime. A vida foi continuando, com as cantigas, com os estudos, com os bailaricos de garagem. Até que fui convocado para prestar serviço militar. Eu sabia de antemão o que isso significava. Ir para a guerra em alguma das ex-colónias. Ensaiei uma tentativa de fuga para França com um tenente, mas no dia, hora e local combinados ele não apareceu. Fiquei escondido um dia inteiro à sua espera, com medo da PIDE. Nada. No final do dia, regressei ao quartel. Faltavam cinco ou seis dias para rumarmos a Angola. Nunca voltei a ouvir falar dele. No dia determinante da minha vida, com dezanove anos, vi-me a entrar para um navio, de seu nome Vera Cruz, onde mais de um milhar de jovens seguiam e iam servir de carne para canhão. Quando chegámos à baía de Luanda, pensei, «Isto talvez não seja assim tão mau». Era bonita. Deu-se a abordagem ao cais e, depois de passar cinco dias na cidade, fomos carregados para uma zona deserta nos arrabaldes. Quando nos começámos a afastar, vários quilómetros percorridos, carregados como se carregam os animais para abate em camiões de carga com taipais em madeira, nesse momento, nesse preciso instante, pensei o seguinte: ESTOU FODIDO. Foi nesse momento que morri. O já homem que eu era, morreu nesse momento. Em seu lugar apareceria um novo que nunca mais conseguiu sorrir apenas por sorrir, que nunca conseguiu encontrar estabilidade fosse onde fosse, rebelde, amargo. Regressei a Portugal dois anos e meio depois, inteiro por fora, mas vazio por dentro. Os meus pais não me reconheceram. Diziam, entre si e aos amigos, «O Carlos, era um rapaz alegre, brincalhão, bem disposto, já não é o mesmo.» Sou apenas um ser humano, insignificante como os outros. Muito mais haveria a dizer, mas não importa. Morri e continuo morto até que o meu corpo siga o mesmo destino."

Carlos Rema


Angola, Nambuangongo, 1973. O carro que se vê tinha cerca de 400 buracos de balas.

30 de maio de 2024

Um pouco de aleatório é tudo o que nos pode salvar. 

22 de maio de 2024

"... que o realismo cinematográfico tem algo de infantil, melhor dito, se renova no encontro com a infância em perigo, daí a sua crueldade."

André Dias
Everything except language
Knows the meaning of existence
Trees, planets, rivers, time
Know nothing else
They express it moment by moment
As the universe

Even this fool of a body
Lives it in part, and would
Have full dignity within it
But for the ignorant freedom
Of my talking mind


11 de abril de 2024

Mirror Drumming

Douceur de n’avoir rien à dire, droit de n’avoir rien à dire, puisque c’est la condition pour que se forme quelque chose de rare ou de rarefié qui mériterait um peut d’être dit.
 
Gilles Deleuze, «Les intercesseurs», Pourparlers 1972-1990.
 
Visando o limite do humano ou, talvez seja indispensável dizer, da humanidade naquilo que é humano, a referência no trabalho de João Biscainho ao silêncio e à linguagem, ao conhecimento e à consciência, à interpretação e à relação com os outros, como também, no extremo oposto, à distorção da identidade e à subversão, tem sido uma constante sem ser, contudo, objeto de uma separação ou de uma oposição entre um «nós» e um «eles». No seu trabalho como artista, mas também como curador, de forma muitas vezes provocatória, essas referências remetem a uma investigação fundamental sobre o corpo e sobre a arte onde as ideias de progresso, mecanismos de perceção e indução de estados mentais, assumem uma relevância particular. Demonstrando como corpo e consciência estão indelevelmente vinculados ao seu contexto social e tecnológico, bem como, desde o alvorar do século XX, a aceleração tecnológica tem vindo a marcar a evolução humana, encontramos no trabalho de Biscainho um permanente e inescapável confronto entre espaço interior e exterior.
 
Num exercício de correspondência notavelmente rigoroso entre os materiais utilizados e a matéria da obra, em Mirror Drumming Biscainho questiona a noção de limite. Limites sociais e humanos, limites éticos e tecnológicos, limites que dizem respeito a um todo e não apenas a uma parte. Nas paredes da Appleton estão fotografias da série Landscapes for a Free Field cujo reflexo treme, vibra e se distorce na superfície de instrumentos de percussão onde a pele foi trocada por uma película de espelho de alta definição. As vibrações são provocadas por um som, curtas frases de percussão previamente gravadas, tocadas por Marco Franco, são intercaladas por períodos aleatórios de silêncio. Nestas fotografias estão pormenores de interiores de algumas das câmaras anecóicas mais avançadas que existem atualmente, fabricadas na Califórnia, que Biscainho visitou e fotografou em 2014. Uma câmara anecóica, ou seja, uma câmara privada de ecos, é uma sala em cujo interior o reflexo de ondas sonoras e de ondas eletromagnéticas é anulado. Aqui, qualquer interferência é absorvida no embate com as paredes forradas com pirâmides de espuma e, assim, este espaço interior pode ser definido como um campo livre. Uma câmara anecóica é o simulacro de um espaço aberto com uma dimensão infinita. Ao lado das imagens onde vemos enquadramentos destas anecóicas, Biscainho instala vários painéis pintados com pigmentos pretos e grafeno que bloqueiam as radiofrequências e a emissão de ondas eletromagnéticas no espaço (proteção RF). De que está o artista a proteger-nos?
 
A exposição continua com This silence for a new society... (that makes me to go back in time): uma mandíbula de cobre parcialmente mergulhada em leite em cima de um plinto construído pelo artista. Tudo nesta peça, de uma beleza alucinante, me interroga. Sou levada a pensar sobre a caracterização deste silêncio. A manutenção do mundo — das relações, no sentido tanto de cuidado como de conservação — é feita através de um escrupuloso uso do silêncio. O que é silenciado tem poder na exata medida em que é formador de uma identidade e define a elasticidade de um vínculo. A linguagem mostra-se particularmente inadequada e ineficaz para dar conta daquilo que se desenvolve na sensibilidade individual e o silêncio acaba por ser a possibilidade que temos de fazer face à nossa incompletude e contradição constitutiva. São categorias como estas — a fissura, a imperfeição, o inconveniente — que nos situam na relação com os outros. Há coisas que, uma vez ditas, arruinariam uma relação. São também essas que nos permitem verificar as suas fundações. O silêncio é um processo interativo que responde ao comportamento de outros seres humanos. Como fizeram as pessoas escravizadas, pode ser a única forma de resposta e resistência ao opressor.
 
Todo o campo da atividade humana é investido pela linguagem. "Não há sociedade sem linguagem, tal como não há sociedade sem comunicação." (1) Uma condição: a fala é, na definição de Saussure, «um ato individual de vontade e inteligência». (2) A existência de discurso implica a participação ativa do sujeito, ou seja, o discurso é sempre intencional. É esta a razão principal para que a linguagem seja o terreno da psicanálise. Dominar a linguagem é dominar o homem e as classes dominantes souberam explorar a arte da oratória para consolidar a sua supremacia. Da mesma maneira, as classes subjugadas desenvolvem um sentido de união e de resistência através da linguagem que aperfeiçoam, afinando sinais em que é possível reconhecer a sua insubmissão ou a sua rendição. O modo de falar não é, por conseguinte, indiferente ao conteúdo da fala, pelo contrário, o modo de falar estrutura o conteúdo ideológico.
 
Mas ter uma ideia não é comunicar.
 
O homem moderno está imerso em signos, gestos e imagens. Mas as ideias não são necessariamente tornadas visíveis. O silêncio de que se fala em Mirror Drumming é uma relação entre o momento atual e o desenvolvimento de certos dispositivos tecnológicos. Com um ensaio clínico atualmente a aceitar participantes, desenvolvido por Elon Musk, o Neuralink (3) será instalado no cérebro e permitirá influenciar o seu funcionamento, nomeadamente emocional (induzir tristeza, prazer, etc.). A hipótese que vem trazer encontra-se na linha daquilo que tem vindo a ser implementado através da manipulação algorítmica e levará a que seja possível ler os pensamentos de um indivíduo sem que este produza som ou externalize qualquer tipo de pensamento. Criado pelo cientista informático Arnav Kapur, o Alter Ego (4) é simplesmente aplicado no queixo e faz a leitura em tempo real das vibrações emitidas pela mandíbula humana inferior quando pensamos em algo, sem verbalizar qualquer som. Trata-se de um dispositivo de leitura do pensamento através da leitura de micro vibrações traduzidas por algoritmo para a nossa linguagem escrita convencional.
 
O quadrado de cobre suspenso ao lado da mandíbula — um material altamente condutor que permite captar e transmitir sinais e energia —, é uma forma de ligação à terra frequentemente usada como dispositivo de segurança de descargas elétricas. Neste caso, ligado à mandíbula mergulhada na cama de leite, também ela feita em cobre, serve de antena que captura a atividade eletromagnética do cosmos (background noise). O quadrado de cobre não está aqui porque o artista pretenda traduzir o cosmos. Nas palavras do próprio, "o cosmos é esmagador". É antes esse não significado que é adicionado à tecnologia das vibrações fisiológicas e íntimas. No fundo, esta antena adaptada vai captar e transmitir ruído sobre a mandíbula em cobre, camuflando os sinais neurais periféricos que o nosso pensamento emite ao osso do maxilar, tornando assim impossível a sua leitura pelo algoritmo. Aquilo em que estamos a pensar deixa de poder ser lido. This silence for a new society... (that makes me to go back in time) é um objeto de intervenção política. João Biscainho criou um instrumento de resistência.
 
Se a subordinação ao momento é o Ás de trunfo da ética, a sua superação é o do poder. É com os interesses mais elementares da vida quotidiana que o poder joga e oportunamente instaura os seus mecanismos de controlo. Quem sabe domina. Quem acredita é dominado. E é também aqui que surge a fronteira: entre silêncio e linguagem, entre ato e potência, reside esta zona fechada, impenetrável à observação, à reflexão ou à teoria, pois a fronteira não é nem silêncio nem linguagem, nem consciente nem inconsciente. Que atos estão representados em Mirror Drumming? Os atos primitivos, que indicam a presença de certos ritos. Comunicar. Celebrar. A fome. É nesta relação entre a ideia e o ato invisível que a exprime, que se produz uma unidade e não uma distinção, uma simultaneidade de causa e efeito e não uma sucessão de ações e reações. É esta ausência da História que marca o posicionamento crítico dos trabalhos do artista.

Vista da exposição. Fotografia de Pedro Tropa, cortesia da Appleton.

(1) Julia Kristeva, História da Linguagem [Le language, cet inconnu], Edições 70, col. Signos, Lisboa, 1969, p. 18.
(2) Ferdinand de Saussure, Cours de linguistique générale, Paris: Payot, 1949, 30–1.
(3) Neuralink: https://neuralink.com/
(4) Alter Ego: https://www.media.mit.edu/projects/alterego/overview/
 
Texto para folha de sala de Mirror Drumming, de João Biscainho, que esteve patente na Appleton, em Lisboa, de 8 de fevereiro a 7 de março de 2024. O catálogo da exposição, com o texto original, está prestes a publicar-se.

7 de abril de 2024

Ana Mendieta, Silueta en fuego (1975). 

24 de março de 2024

“A erva prostrara-se, a vida entorpecera-se. Agora tudo parecia infinito, petrificado pelo tédio: as colinas queimadas, escuras e verdes, violáceas no horizonte com as suas tintas discretas como a sombra, a planície com o seu fundo brumoso e, tombando sobre elas, esse céu que na estepe sem árvores nem altas montanhas parece terrivelmente alto e transparente. Que calor e que aborrecimento! A caleça corre, e, todavia, Iegoruchka vê sempre a mesma coisa: o céu, a planície, as colinas.”

Anton Tchekhov, A estepe (1888). 
[Trad. Maria do Carmo Santos]. 

19 de março de 2024

“I seldom know where I’m headed, but if the story is meant to be, you cross over to the other side — you’re inside it, and there’s an engine.”

Jhumpa Lahiri

17 de março de 2024

"A degradação das penas de aço é tal que, depois de fazer o meu melhor para dar forma a uma aparando e limando, tive de me habituar a uma [caneta] Waterman, ainda que desconfie profundamente delas e não acredite nas suas capacidades para exprimir os sentimentos mais profundos."

Virginia Woolf, Diários, quinta-feira, 24 de outubro de 1918. 

Bic cristal azul para sempre. 

8 de março de 2024

Issa Lopéz começou por seguir arqueologia, mas desistiu porque «o apelo do cinema era demasiado forte» e foi escrever telenovelas mexicanas. Depois de somar prémios literários, incluindo o mais importante prémio literário mexicano, prémios em filmes e prémios como realizadora, a HBO foi buscá-la para escrever a quarta temporada da série True Detective e, pela primeira vez na série, Issa dá-lhe um subtítulo, NIGHT COUNTRY: "Where True Detective is male and it's sweaty, Night Country is cold and it's dark and it's female", diz numa entrevista. Escreveu os seis episódios em quarentena a ouvir uma música chamada bury friend, que a Billie Eillish escreveu a partir da perspetiva do monstro debaixo da cama

Kali Reis é uma pugilista profissional e atriz americana de ascendência cabo-verdiana e indígena americana. Foi campeã mundial em duas categorias de peso, tendo detido o título de peso médio feminino do WBC em 2016 e três títulos de peso médio feminino entre 2020 e 2022. É uma ativista no movimento das Mulheres e Raparigas Indígenas Desaparecidas e Assassinadas. Aparentemente, eu desconhecia, entre o Canadá e os EUA as mulheres indígenas desaparecem todos os anos às centenas sem deixar rasto e dispensando investigação policial. O movimento denuncia a ligação entre tráfico sexual, assédio sexual, agressão sexual e assassinatos. O número é seis vezes superior ao que existe atualmente para outras mulheres. 

Jodie Foster não aceitava protagonizar uma série desde 1975 e diz que aceitou porque a personagem dela é uma ‘Karen’. Karen, fui ver, é um termo depreciativo usado para designar uma mulher americana branca de classe média que abusa do seu privilégio branco de classe para exigir o que quer. 

Há uma frase na Guerra dos Tronos que ficou famosa porque alguém a diz em todos os episódios: "Winter is coming". Enquanto via o NIGHT COUNTRY andava a pensar nela outra vez. É uma frase poética que me ocorre com frequência desde aí para deixar algumas obsessões no mistério ou, pelo contrário, para concluir um tema irresolúvel. A certa altura (a ficha cai-me sempre no último minuto) percebi que esta temporada de True Detective também tem um ritornelo: "She’s calling." Quem estava a chamar? Primeiro pensei que era a Natureza. Andam a perfurar a terra para salvar o mundo. Na verdade, andam mesmo: ir à lua, ir a Marte, plantar satélites é fácil. O maior segredo do mundo são as suas entranhas. Depois, fui ler sobre cultura indígena. "Ouvir a voz dos antepassados é ouvir a nossa intuição." No fundo, vai dar ao mesmo. Atenção, intuição, observação. NIGHT COUNTRY é friamente feminino. Sem dúvida. É uma vingança do princípio ao fim, não um desejo de, leia-se bem, uma vingança. Uma vingança redentora que conduz à sororidade. É sobre dar o troco, dar uma lição, punir, castigar, ter o saldo. É uma catarse. Ao ponto de assistirmos à conversão da Karen. É sobre internamentos, desaparecimentos, ocultações. Sobre isolar e silenciar. É por isso que acho que a frase de NIGHT COUNTRY não é o seu ritornelo, mas sim uma pequena frase que só aparece no último episódio: "Want a coffee?"

3 de março de 2024

Tenho uma sensação incómoda quando acontece — o que evito — publicar no blogue demasiadas imagens. Construí este pequeno ermo sem raias para me proteger das imagens, para me refugiar e me esconder dos ícones, das efígies, das paisagens, dos símbolos, dos desenhos, das figuras, dos traços, das ilustrações. Do temperamento da cor, onde se inclui o preto e o branco, da profundidade de campo, das formas visíveis da representação. O que se tornou tão ofensivo nas imagens, tão aborrecido? E o que protege ainda a literatura? Cada vez mais vejo a literatura não como algo que se cria de maneira abstrata, mas como algo onde entramos e não pára de se transformar, um espaço onde, quanto mais se entra, mais pormenores nos revela da sua permanente metamorfose e mais aumenta, mais se abre. Um ser vivo que se dá na medida do que lhe dermos. E que exige o corpo em troca. 

29 de fevereiro de 2024

"É o desconhecido de nós mesmos, da nossa cabeça, do nosso corpo. Não é sequer uma reflexão, escrever é uma espécie de faculdade que temos ao lado da nossa pessoa, paralelamente a ela, de uma outra pessoa que aparece e que avança, invisível, dotada de pensamento, de cólera, e que, por vezes, pelos seus próprios factos, está em perigo de perder a vida." 

Marguerite Duras, Escrever (1993, três anos antes da sua morte).

20 de fevereiro de 2024

"«A minha filha», sussurrou Madame ao acompanhar-me ao elevador, «tentou queimar-me.» Disse-o com uma doçura tal, que parecia arrependimento. Abriu a porta do elevador. Lá dentro, um espelho e um banco. «Elle n'est pas responsable.»"

Fleur Jaeggy, Felizes anos de castigo.
[Trad. Ana Cláudia Santos]

12 de fevereiro de 2024

Escrevi vinte e oito páginas de uma carta. Parei a meio de uma frase, alarmada, como se a estranheza de ver de soslaio o número a um canto me tivesse despertado de uma alucinação. Tive a sensação de estar cega e voltar a ver, de ser puxada de um lugar insondável para a superfície, de ter esquecido a existência e de regressar a ela porque alguém estalou os dedos. Tenho o que se parece com um corpo, estou aqui, mas não foi este corpo que escreveu, escrevi como um animal mata, sem hesitação. Nem sequer compreendo como foi possível escrever tanto tão rapidamente, costumo demorar dias a preencher duas ou três páginas. Tenho a sensação assustadora de estar diante de uma massa impenetrável expelida num vómito e a certeza com que comecei, de haver um destinatário, desfaz-se como o desejo dissoluto depois do orgasmo: um repúdio cínico nega que alguma vez tenha existido.

11 de fevereiro de 2024