"Com a chegada de Francisco Fanhais ao colégio onde eu estudava, muito começou a mudar na minha vida. Por essa altura, embora muito pouco esclarecido, não era de todo uma pessoa que passasse à margem do que este país era. O colégio tinha alunos externos e internos. De início, poucos apareciam nessas aulas dadas num anfiteatro do colégio, de canto coral, ao sábado e facultativas. Alguns internos começaram a ir e depressa o interesse se espalhou entre nós, os externos. Decidi ir espreitar. Éramos poucos. Mas passadas duas ou três semanas, o anfiteatro era pequeno para acolher tantos que ali chegávamos. O nome de canto coral era apenas um nome. As aulas que ele dava constavam na sua totalidade de canções que ele cantava. Na altura tinha uma paixão por espirituais negros. O Fanhais falava connosco sobre alguns desses espirituais e explicava-nos o seu significado que, muitas vezes, estava à vista. Mas ele lá nos ia contando. Depois, perguntou se alguém sabia tocar viola. Eu fui um dos que disse que sim e então começou a surgir uma comunhão entre professor e alunos. O tempo passou, alguns deixaram de aparecer, mas, os que ficaram, tiveram de igual modo o privilégio de começar a ouvir e a tocar cantigas do Zeca Afonso e de outros cantores dessa época. Cantigas absolutamente proibidas pelo regime fascista. Aí começou de facto uma grande transformação em mim. Comecei a ler livros proibidos que conseguia arranjar através de um amigo cujo pai era conhecido por ser oposicionista ao regime. A vida foi continuando, com as cantigas, com os estudos, com os bailaricos de garagem. Até que fui convocado para prestar serviço militar. Eu sabia de antemão o que isso significava. Ir para a guerra em alguma das ex-colónias. Ensaiei uma tentativa de fuga para França com um tenente, mas no dia, hora e local combinados ele não apareceu. Fiquei escondido um dia inteiro à sua espera, com medo da PIDE. Nada. No final do dia, regressei ao quartel. Faltavam cinco ou seis dias para rumarmos a Angola. Nunca voltei a ouvir falar dele. No dia determinante da minha vida, com dezanove anos, vi-me a entrar para um navio, de seu nome Vera Cruz, onde mais de um milhar de jovens seguiam e iam servir de carne para canhão. Quando chegámos à baía de Luanda, pensei, «Isto talvez não seja assim tão mau». Era bonita. Deu-se a abordagem ao cais e, depois de passar cinco dias na cidade, fomos carregados para uma zona deserta nos arrabaldes. Quando nos começámos a afastar, vários quilómetros percorridos, carregados como se carregam os animais para abate em camiões de carga com taipais em madeira, nesse momento, nesse preciso instante, pensei o seguinte: ESTOU FODIDO. Foi nesse momento que morri. O já homem que eu era, morreu nesse momento. Em seu lugar apareceria um novo que nunca mais conseguiu sorrir apenas por sorrir, que nunca conseguiu encontrar estabilidade fosse onde fosse, rebelde, amargo. Regressei a Portugal dois anos e meio depois, inteiro por fora, mas vazio por dentro. Os meus pais não me reconheceram. Diziam, entre si e aos amigos, «O Carlos, era um rapaz alegre, brincalhão, bem disposto, já não é o mesmo.» Sou apenas um ser humano, insignificante como os outros. Muito mais haveria a dizer, mas não importa. Morri e continuo morto até que o meu corpo siga o mesmo destino."
Carlos Rema
Angola, Nambuangongo, 1973. O carro que se vê tinha cerca de 400 buracos de balas.