20 de fevereiro de 2024

"«A minha filha», sussurrou Madame ao acompanhar-me ao elevador, «tentou queimar-me.» Disse-o com uma doçura tal, que parecia arrependimento. Abriu a porta do elevador. Lá dentro, um espelho e um banco. «Elle n'est pas responsable.»"

Fleur Jaeggy, Felizes anos de castigo.
[Trad. Ana Cláudia Santos]

12 de fevereiro de 2024

Escrevi vinte e oito páginas de uma carta. Parei a meio de uma frase, alarmada, como se a estranheza de ver de soslaio o número a um canto me tivesse despertado de uma alucinação. Tive a sensação de estar cega e voltar a ver, de ser puxada de um lugar insondável para a superfície, de ter esquecido a existência e de regressar a ela porque alguém estalou os dedos. Tenho o que se parece com um corpo, estou aqui, mas não foi este corpo que escreveu, escrevi como um animal mata, sem hesitação. Nem sequer compreendo como foi possível escrever tanto tão rapidamente, costumo demorar dias a preencher duas ou três páginas. Tenho a sensação assustadora de estar diante de uma massa impenetrável expelida num vómito e a certeza com que comecei, de haver um destinatário, desfaz-se como o desejo dissoluto depois do orgasmo: um repúdio cínico nega que alguma vez tenha existido.

11 de fevereiro de 2024

25 de janeiro de 2024

Escrevi em 2021 o que poderia dizer sobre o Folhas Caídas.











Kuolleet lehdet [Folhas Caídas], Aki Kaurismäki (2023).

18 de janeiro de 2024

Na tua ausência
converso 
contigo
na tua presença
converso comigo. 

Abbas Kiarostami  
(vamos disse ele
não tão longe disse ela
o que é longe para ti disse ele
exatamente aqui disse ela)

e. e. cummings

14 de janeiro de 2024

Bebo à minha casa em chamas,
À minha vida desesperada
E à solidão de dois.

Anna Akhmatova

11 de janeiro de 2024

Plano de escrita de Ursula K. Le Guin:

5:30 - acordar e ficar deitada e pensar.
6:15 - levantar e tomar pequeno-almoço (muito).
7:15 - começar a trabalhar, escrever, escrever, escrever.
Meio-dia—almoçar.
13:00-15:00 - ler, música.
15:00-17:00 - cartas, talvez arrumar a casa.
17:00-20:00 - fazer jantar e jantar.
Depois das 20:00 - tenho tendência a ficar muito estúpida e não vamos falar disso. 

8 de janeiro de 2024

Hoje no metro tresandava a fogo. Nos corredores o fumo era tanto que picava os olhos. Mas não se ouvia nenhum alarme. Do outro lado da linha, ninguém se movia. Coloquei um lenço sobre a boca e o nariz e sentei-me à espera do próximo. Havia um comboio parado na linha oposta. As pessoas levavam as mãos à cabeça, entravam e saíam rapidamente das carruagens e sorriam ao falar umas com as outras, esse sorriso torpe que acompanha as tragédias que não se abateram sobre nós próprios. Dois seguranças estavam parados numa das extremidades do túnel. Olhavam ora um para o outro, ora para a carruagem parada, e não diziam palavra. Equipados com coletes refletores, outros dois seguranças chegaram a correr, do outro lado do túnel. Ficaram a conversar calmamente sem se dirigir nem aos passageiros nem às carruagens. Os passos das pessoas que desciam os degraus para entrar na linha, tornavam-se progressivamente mais lentos; as pessoas hesitavam. Algumas entravam no túnel, outras, mais raramente, voltavam a subir os degraus depois de lançar um olhar em volta e desapareciam. Na plataforma, os homens punham as mãos nas ancas e arqueavam as costas. As mulheres sentavam-se e olhavam em volta como passarinhos. Esperei que algo acontecesse. Deveria ir-me embora? Não queria ir-me embora. Não queria mexer-me. Fiquei muito tempo sentada. Tinha um sentimento estranho ao que via, de tranquilidade. Na verdade, todos tinham, os seguranças, os passageiros que permaneceram sentados dentro da carruagem do comboio parado na linha oposta, os passageiros que aguardavam o próximo comboio do meu lado da linha e os que aguardavam na outra plataforma que a situação se resolvesse. Cheira a fogo, vê-se fumo, e é tudo. Não se sabe onde arde, não se sabe se temos de fugir, não deflagra.  

1 de janeiro de 2024

"E voltou para junto da raposa:
— Adeus, disse...
— Adeus, disse a raposa. Eis o meu segredo. É muito simples: só se pode ver com o coração. O essencial é invisível aos olhos.
— O essencial é invisível aos olhos, repetiu o principezinho de modo a poder recordar-se.
— É o tempo que perdeste com a tua rosa que torna a tua rosa tão importante.
— É o tempo que eu perdi com a minha rosa... disse o principezinho para se recordar.
Os homens esqueceram esta verdade, disse a raposa. Mas tu não deves esquecer-te. Tornaste-te para sempre responsável por aquilo que cativaste. Tu és responsável pela tua rosa... repetiu o principezinho, para se recordar."

Antoine de Saint-Exupéry

22 de dezembro de 2023

“A memorable story follows a predictable pattern, unpredictably.”

16 de dezembro de 2023

“Discordo de tudo isto. Chegaria ao ponto de dizer que a forma natural, apropriada e adequada do romance, pode ser a de um saco, de uma cesta. Um livro carrega palavras. As palavras guardam coisas. Transportam significados. Um romance é um frasco medicinal, que mantém as coisas numa relação particular e poderosa entre si e connosco. Uma das relações entre elementos de um romance pode muito bem ser o conflito, mas a redução da narrativa ao conflito é absurda.”

Ursula K. Le Guin, A ficção como cesta: uma teoria


Notas das revisões finais de Elena Ferrante para a História
 da Menina Perdida.
As Mrs. Dalloway walks, she does not merely perceive the city around her. Rather, she dips in and out of her past, remolding London into a highly textured mental landscape, “making it up, building it round one, tumbling it, creating it every moment afresh.”

(...).

Woolf relished the creative energy of London’s streets, describing it in her diary as “being on the highest crest of the biggest wave, right in the centre & swim of things.

12 de dezembro de 2023

“E a visão longínqua do centro que mal se vê, e a visão que as clareiras do bosque oferecem, parecem prometer, mais que uma visão nova, um meio de visibilidade onde a imagem seja real e o pensamento e o sentir se identifiquem sem ser à custa de se perderem um no outro, ou de se anularem.”

María Zambrano, Clareiras do Bosque