2 de dezembro de 2023

Não conseguiria nunca dizer nada sobre a minha mãe:
como ela repetia, vais arrepender-te um dia,
quando já cá não estiver, e como eu não acreditava
nem no “não estiver” nem no “já não”,
como gostava de a observar quando lia os grandes êxitos,
começando sempre pelo último capítulo,
como na cozinha, convencida de que não era
lugar para ela, fazia o café dominical
ou, pior ainda, filetes de bacalhau,
como estudava o espelho enquanto esperava os convidados,
fazendo a cara que melhor a impedia
de se ver como era (nisto
e em mais umas tantas fraquezas saio a ela),
como falava demais sobre coisas
que não eram o seu forte e como eu estupidamente
a arreliava, por exemplo, quando
se comparava a Beethoven ao ficar surda
e eu dizia, cruelmente, mas sabes ele
era talentoso, como perdoava tudo,
como eu recordo isso e como, de Houston, fui de avião
ao seu funeral, fui incapaz de dizer uma palavra
e ainda hoje não consigo.

Adam Zagajewski

30 de novembro de 2023

“Se quisesse, apresentava-me como uma vítima da escrita, da inocência, da neurose e suas instâncias psiquiátricas e psicanalíticas; uma vítima da mitologia do fogo e da água, das razões misteriosas da morte e transfiguração, ou do princípio de que aquilo que está em baixo é igual ao que está em cima, das práticas sexuais angélicas no fundo do inferno; vítima, enfim, da oposição ao mundo e do radicalismo com que alguém se empenha na utopia do ouro onde gloriosamente queima os dedos. Poderia dizer: sou um leproso!” 

Herberto Helder, Photomaton & Vox.
Desconfio tanto da obscuridade como da evidência. 

29 de novembro de 2023

18 de novembro de 2023

Reduzir o problema a uma questão moral inviabiliza o pensamento crítico.

O conflito dá movimento à história. Abdicar dele é abdicar de uma história possível, especialmente do que traria à nossa própria deriva.

14 de novembro de 2023

Tenho muita vontade de escrever sobre as coisas que odeio. Escrever sobre aquilo que se ama é fácil, o amor traz em si uma elevação mesmo que insistamos em falar dele da maneira mais perversa e violenta. Não sei porquê, talvez porque a poesia esteja naturalmente instalada nas afinidades e a volúpia, embora escondida, seja conhecida de todos. Aquilo que odeio, contudo, não só está à mostra como pertence à mais pura vulgaridade, é banal, e é muito difícil escrever sobre isso sem soar igualmente medíocre. É como se a abjeção me arrastasse para dentro dela cada vez que a nomeio. Mas se a afasto, volto a vê-la à superfície, fala-me constantemente. Amar é raro, mas odiar? O ódio é universal, está em toda a parte, é a nossa mais íntima ligação ao mundo. E que se desengane quem pensar que na infância não temos senão sentimentos puros, virtuosos e imaculados. O ódio existe na infância de modo mais feroz do que em qualquer outra idade porque não tem contraponto, assim que nasce é inteiramente arremessado ao seu destinatário, sem perguntas, sem críticas, sem culpa. Nascemos a amar os nossos pais sem razão e impercetivelmente passamos um dia a odiá-los. Há ódios que demoram anos a formar-se, a declarar-se, muitos de que dificilmente acabamos por tomar consciência. O ódio é o trabalho de uma vida. Claro que também nos odiamos a nós próprios, às vezes mais do que qualquer outra coisa odiamo-nos a nós próprios e é nesse ódio que se baseia o nosso comportamento, todas as nossas decisões, a forma como vemos o nosso tempo, os outros, o futuro. Que material mais rico pode haver?

13 de novembro de 2023

“Depressões pessimistas devem ser consideradas pausas criativas nas quais as forças se restabelecem. Se tivermos consciência desse facto, as depressões passarão mais depressa. Jamais devemos sentir-nos deprimidos numa depressão.”

Etty Hillesum, Cartas 1942-1943.

11 de novembro de 2023

Kiriko: Um amigo disse-me que tudo o que as garças dizem é mentira. Isto é verdade?
Garça: Não! Não é verdade! Nem tudo o que as garças dizem é mentira!
Mahito: Isso é mentira. 
Garça: Mas esta mentira é verdade!

O rapaz e a garça, Hayao Miyazaki, Studio Ghibli (2023).
«Vi o fogo memo armado a mim.»
«Nessa altura nem passei bombeiro nem passei um helicóptero nem passei nadinha. Nada.»
«Já na tenho medo do fogo. Medo de quê? Ele já na tem por onde arda. Já quemou tudo.»

Mulheres de Pedrógão Grande, reportagem RTP1, 2017.

7 de novembro de 2023

 

29 de outubro de 2023

Na altura em que as meninas começam a perceber que não há príncipes encantados, uma amiga havia iniciado um namoro que parecia ter estagnado no arranque. A minha amiga sonhava com juntar as escovas de dentes. Já ele não se percebia muito bem. Portanto, afinal não era simples. As conversas sucediam-se há meses. Não eram exatamente discussões, ou eram, mas eram discussões filosóficas. Sobre a relação, sobre o amor, sobre sexo, sobre vontades, sobre o presente e sobre o futuro, e por aí vai. Todos os dias a minha amiga me contava sobre a última conversa. Apesar de por vezes haver uma lágrima ou outra, eu achava que havia qualquer coisa de competitivo entre eles que os fazia preferir a argumentação à resolução. E perguntava-me, se tudo era um problema, o que havia de bom para levar para uma casa? Mas a minha amiga dizia-me que gostava dele, e eu queria ajudá-la a encontrar alívio para o desespero. Um dia, tinha ido dormir a casa dela, estávamos a fazer um balanço das últimas conversas. Quando digo «estávamos» refiro-me a estar a ouvir a minha amiga pensar. Jantámos, fumámos, fumámos outra vez, e mais tarde, quando fomos para a cama, ela chegava mais uma vez às conclusões de sempre, que eram uma espécie de beco sem saída. Nesse dia, quando puxámos as mantas, disse-lhe uma coisa. Disse-lhe que no próximo encontro ela esperasse pela conversa, que era sempre ele que puxava. Disse-lhe que o deixasse falar o tempo que ele quisesse sem nunca o interromper, por muito que isso lhe custasse. Disse-lhe que se mantivesse serena, sem qualquer expressão de rosto que ele pudesse considerar provocação e, sobretudo, sem reagir ao que ele tivesse para dizer. Disse-lhe que quando ele acabasse de falar lhe dissesse esta frase, voltasse as costas e viesse embora.
 
— O Dumbo voa com as orelhas.