1 de fevereiro de 2021

hoje, abri uma janela de chat com um amigo e disse-lhe: "tenho vontade de viver". mas que difícil organizar a vontade de fazer tantas coisas e ter de trabalhar para outrem. partir, partir, sempre partir para ver mais mundo, estar mais com os outros, rir mais alto, aprender mais um passo de dança e gastá-lo até cair. não sabemos nada da vida e de nós próprios também hesito em afirmar que possamos saber alguma coisa. vamos de um lado ao outro da alegria e damos com a tristeza, de um lado ao outro da tristeza e damos com a alegria. temos íntimos exóticos devorados pelo silêncio da incerteza e da certeza e avançamos, mas não vamos a lado nenhum. estar aqui é absoluto, temos uma voz, um corpo, e as coisas respondem-nos cheias de bondade, oferecem-nos a qualidade do perigo, do inesperado, onde, como diz o poeta, me tornei hábil a cair verticalmente.

19 de janeiro de 2021

a matilha ladra de madrugada
o teu corpo quente e inesperado
como um tordo num pomar

6 de janeiro de 2021

O sofrimento é interminável
Do fio de ribeiro veloz
A minha mão se afasta.

8 de outubro de 2020

O Poder de Circe

Nunca transformei ninguém em porco.
Algumas pessoas são porcos; faço-os
parecerem-se a porcos.

Estou farta do vosso mundo
que permite que o exterior disfarce o interior.

Os teus homens não eram maus;
uma vida indisciplinada
fez-lhes isso. Como porcos,

sob o meu cuidado
e das minhas ajudantes,
tornaram-se mais dóceis.

Depois reverti o encanto,
mostrando-te a minha boa vontade
e o meu poder. Eu vi

que poderíamos ser aqui felizes,
como o são os homens e as mulheres
de exigências simples. Ao mesmo tempo,

previ a tua partida,
os teus homens, com a minha ajuda, sujeitando
o mar ruidoso e sobressaltado. Pensas

que algumas lágrimas me perturbam? Meu amigo,
toda a feiticeira tem
um coração pragmático; ninguém

vê o essencial que não possa
enfrentar os limites. Se apenas te quisesse ter
podia ter-te aprisionado.

Louise Glück

1 de outubro de 2020

"La main est action : elle prend, elle crée, et parfois on dirait qu’elle pense. (...) La main arrache le toucher à sa passivité réceptive, elle l’organise pour l’expérience et pour l’action. Elle apprend à l’homme à posséder l’étendue, le poids, la densité, le nombre. Créant un univers inédit, elle y laisse
partout son empreinte. Elle se mesure avec la matière qu’elle métamorphose, avec la forme qu’elle transfigure. Éducatrice de l’homme, elle le multiplie dans l’espace et dans le temps."

Henri Focillon, La vie des formes.

17 de setembro de 2020

Nunca se sabe de antemão como alguém vai aprender — que amores tornam alguém bom em latim, por meio de que encontros se é filósofo, em que dicionários se aprende a pensar.

Gilles Deleuze, Diferença e Repetição.

20 de agosto de 2020

There is, Kafka says, ‘plenty of hope, an infinite amount of hope–but not for us.’ There is hope always only for another– and for ‘us’ only when there is, so to speak, no ‘us,’ when ‘we’ stop being ‘ourselves’ and begin to be another. ‘Plenty of hope,’ therefore, ‘but not for us.’

Werner Hamacher, The Gesture in the Name.

30 de junho de 2020

de repente estou lá em cima. o horizonte envolve-me. quando levanto os meus olhos da terra, observo a amplitude à minha volta, discernindo claramente todos os pormenores da paisagem. nomeio-os por instantes, para saborear melhor o meu regozijo: sol, floresta, cidade, gato. assim que decido voltar apenas a observar, o prazer esgotou-se. percebo imediatamente que a descida deverá começar em breve e que não voltarei.

26 de junho de 2020

as flores dos jacarandás caíram
este tempo é teu
atravessamos o rio
alimento-me com a tua juventude
a minha atenção veloz
despede-se dela

25 de junho de 2020

A partir daqui

A partir daqui isto não tem nada a ver contigo.
Sento-me no degrau de uma porta
À espera de alguém,
Mas não espero nada.
Tenho uma reunião daqui a pouco,
Mas não irei.
A minha irmã espera um telefonema meu,
Mas somos estranhas.
A solidão que se apresenta
É imprecisa, extraordinária,
Distribui-se pelo corpo como um formigueiro
E sela o silêncio com o silêncio.
A partir daqui deixas de ter nome
E tudo o que conheço de ti passa a ser incriado,
perfeito e sólido,
sem fim.

24 de junho de 2020

quero sentir-me como um animal selvagem enquanto escrevo.

2 de junho de 2020

No one is born hating another person because of the color of his skin, or his background, or his religion. People must learn to hate, and if they can learn to hate, they can be taught to love, for love comes more naturally to the human heart than its opposite.

Nelson Mandela

30 de maio de 2020

uma exigência é e não é,
ao mesmo tempo.
ela abre o seu próprio limiar
com uma linguagem tátil,
com que atinge os outros
à distância
  — esses corpos puros
abertos ao fora
como animais selvagens —
num tempo silencioso
que habita a banalidade
do mundo,
esse tempo fascinante
que atrai a sinceridade da vida
e cai cativo dela.

26 de maio de 2020

ao mesmo tempo, a relação exerce os seus direitos, como uma força que traga força, e transforma o limite em limiar. nem ao ver nem ao imaginar cabe a primazia, a força vai apenas de uma extremidade à outra e, como uma inspiração e uma expiração, nada a excede.

25 de maio de 2020

depois de todos recolherem, chegara a hora de limpar os destroços e organizar o dia que começaria dali a umas horas. cozinha e café arrumados, fui sentar-me a seguir debaixo do alpendre a fumar e a contemplar um céu de verão forrado de estrelas, a serra eminente e negra ao fundo, de onde por vezes chegavam vozes de animais, lobos e raposas sobretudo. era cedo, não tinha sono, mas já não tinha nada que fazer. decidi ir para o quarto ler. era a primeira vez que iria partilhar o quarto. nesse dia tinha chegado um grupo de franceses e americanos, espeleólogos e arqueólogos, para realizar uma investigação importante pela qual eu, apesar da parafernália de mapas, ferramentas e computadores distribuídos pela sala, não tinha sentido qualquer interesse. como não havia mais quartos vagos, a americana, uma mulher cheia de sardas vestida de punk, tinha ficado no meu, onde havia uma cama e um armário livres. a ideia não me agradava. nunca gostei de partilhar o meu espaço, que preservo o mais possível da presença dos outros. foi por isso com relutância que caminhei pelas salas imersas na escuridão em direção ao refúgio que já não era o meu. para minha surpresa, ao abrir a porta vi que a luz estava acesa, o que me obrigaria a confraternizar, tudo o que àquela hora me deveria recusar terminantemente a fazer. contrafeita, mas resignada, percorri o pequeno corredor que me levava ao interior do quarto e deparei-me com ela.
ela era uma jovem mulher de tez muito branca e cabelos ruivos caídos como uma cascata pela beira da cama, de onde pendia também um braço onde não restava espaço para mais uma cicatriz. tinha-se ferido tantas vezes que era impossível distinguir a pele dos cortes. dormia serenamente, embora quase a cair da cama e de luz acesa. imprudente, sentei-me na cama ao lado a observar a sua respiração lenta e grave, a extrema alvura da sua pele como um rio de leite ao lado de um céu de fogo. sentada à beira da cama, fui incapaz de pegar no livro e deixei-me ficar em adoração, como se fosse uma santa.