9 de outubro de 2019

MANOBRAS DE OUTONO

Manobras de Outono
Não digo: isso foi ontem. Com insignificantes
trocos de Verão nos bolsos, estamos de novo deitados
sobre o joio do sarcasmo, nas manobras de Outono do tempo.
E a nós não nos é dada, como aos pássaros,
a retirada para o sul. À noite passam por nós
traineiras e gondolas, e por vezes
atinge-me um estilhaço de mármore impregnado de sonho,
onde a beleza me torna vulnerável, nos olhos.

Leio nos jornais muitas notícias - do frio
e suas consequências, de imprudentes e mortos,
de exilados, assassinos e meríades
de blocos de gelo, mas pouca coisa que me dê prazer.
E porque havia de dar? Ao pedinte que vem ao meio-dia
fecho-lhe a porta na cara, porque há paz
e podemos evitar essas cenas, mas não
o triste cair das folhas à chuva.

Vamos viajar! Debaixo dos ciprestes
ou de palmeiras ou nos laranjais, vamos
contemplar a preços reduzidos
inigualáveis pôr-do-sol! Vamos esquecer
as cartas ao dia de ontem, não respondidas!
O tempo faz milagres. Mas se chegar quando não nos convém,
com o bater da culpa - não estamos em casa.
Na cave do coração, desperto, encontro-me de novo
sobre o joio do sarcasmo, nas manobras de Outono do tempo.

Ingeborg Bachmann
Quando regressares a Ítaca, à maneira de Ulisses, reza por uma viagem longa, que possas passar por muitos portos, ter uma vida cheia, uma vida plena de acontecimentos. Porque depois quando chegares a Ítaca, Ítaca não tem nada para te dar, deu-te a viagem.

Kavafis

8 de outubro de 2019

“People do not always know what they feel, nor do they acknowledge what they really know. Sometimes we say what we think we are supposed to say, or what we are used to saying; we don’t give the actual moment a chance. Sometimes we just try out saying certain things."

Sarah Schulman

27 de setembro de 2019

que habitação desejas erguer para mim,
que escritura negra quando alastrar o fogo?

hesitei muito tempo diante dos sinais,
expulsaste-me da própria densidade.

a noite vasta acolhe-me aqui,
com cavalos sombrios me afasto de ti.

Henri Michaux
Egon Schiele, «Seated woman in violet stockings», 1917.
O amor é a estranheza.

Herman Boch
Novo texto no BUALA sobre a obra de Carlos Correia:

O mediatismo das pinturas exteriores difere radicalmente da depuração das pinturas interiores, estas últimas, assentes na perspetiva, a par de uma vigorosa pesquisa cromática, são geométricas, abstratas, em camadas, espaços fechados que abrem para outros espaços fechados e vazios que abrem para outros vazios. No plano destas pinturas vemos palcos, portas, janelas, espelhos, telas, cadeiras, mesas, pranchas, tábuas, lugares que convocam o acontecimento, ou seja, essas imagens de que a pintura exterior irá apropriar-se.
Nothing is more beautiful than the first few minutes of loneliness with the one who could love us, the one we could love. Nothing is quieter than such minutes, nothing more saturated with mild expectation. It is for these minutes that you feel you love and not for those who follow.

Stig Dagerman, The Red Dress.

26 de setembro de 2019

Reivindicamos tanto una habitación propia que nos olvidamos que muchas de nosotras no podrán tenerla porque están fuera del sistema, porque para muchos y muchas ni siquiera están en el imaginario común, porque dolorosamente no hay espacio para ellas.

María Sanchez, Madriguera.

19 de setembro de 2019

13 de setembro de 2019

Conheço um lugar
Habitado pela melancolia
Onde o céu
Tem sempre as cores
Do fim do verão

As suas ruas
Estão vazias
Criminosamente limpas e silenciosas
Como uma casa
À hora da sesta

Cheiram a mar
E a gato
São feitas da substância
Do amor maternal
Insubstituível e gracioso

Nunca lá entrei
Aguardo uma manhã muda
Sem lei nem incerteza
Pois sei que qualquer esforço
Quebrará a sua frágil paz.
Aleksandra Waliszewska

6 de setembro de 2019

I swam past your house, you were in
veils of light held you, other arms of mine
under heavy botanical roofs
loaded diaphragms
full of water

back then I was waking up blue
all blue, more than the world,
my days truly liquid, placental, lacrimosos,
hybrid creatures slippery and shiny
salt and sea in your sleeping hair

it was warm and humid where my words germinated
from the seed of your name shot and grew
little green multiplications
embryos of whispers and scents with their shy sounds

but me, indelicate me,
I was a forest fire trying to catch your eye
trying to buy your favorite words
trying to corner you within
my walls intertwined with clouds.
I was a hurricane twirling
fire and glass at the center of that night club.
There was a tiger in my chest
there was a song in my heart
and it said that all my gold was melting
and I finally could float

– look at your hands
aren’t they blue too?
your aquarium eyes
your bougainvillea mouth
I swim past your house and float upon your body
I’ll lower myself slowly and merge with
the greenery of you

Isabel Cordovil

4 de setembro de 2019

O prazer do ruído é cada vez mais notável na nossa civilização e nós aceitamo-lo com benevolência. Isso quer dizer que toda a benevolência supõe um erro. Onde está o erro da nossa época? Temos demasiados modelos de erro para o saber.

Agustina Bessa-Luís

28 de agosto de 2019

O dia em que cheguei a Lisboa também era branco. Era um fim de tarde de novembro e eu não sabia onde estava. Deixei a mala no quarto e saí pela primeira vez, ansiosa e anestesiada. Queria ir até ao cruzamento com mais trânsito e ficar aí para ver como o dia mudava até ser noite, como eram as pessoas, saber se me perdia. Quando tinha feito cinco metros de rua dei de caras com o deus grego que eu observava ao longe na praia da Nazaré todos os verões.
O deus grego não era grego. Era um rapaz loiro de olhos muito azuis mais ou menos da minha altura cujos contornos poderiam ter sido esculpidos em mármore. Eu ficava siderada assim que ele aparecia na praia. Tudo em mim se calava profundamente. Penso que talvez fosse isso que eu temia nele — e eu temia-o: o nosso encontro deixava-me em silêncio. Eu achava que isso lhe dava um poder colossal sobre mim, que ele nunca poderia descobrir.
Portanto eu estava há um par de horas em Lisboa e o deus grego descia o passeio na minha direção. Fiquei atónita, imóvel, o meu coração fez tic e depois já não fez tac. Julguei que era uma contingência tremenda, que ele passaria por mim sem me reconhecer. Mas não, o deus grego dirigiu-se a mim com um grande sorriso, abraçou-me e tcharam!: sabia o meu nome. Eu não sabia o dele.
Perguntou-me o que é que eu estava a fazer ali, se tinha vindo estudar para Lisboa (respondi com um sim) explicou que o pai dele trabalhava cá, era advogado, que os pais eram divorciados e que até ali ele tinha vivido com a mãe na Nazaré mas que agora que tinha vindo estudar ía ficar com o pai, só que ainda não sabia dizer se estava contente com isso ou não. Falava muito rápido, com um grande sorriso, as mãos tocaram-me nos braços várias vezes. Era a primeira vez que falávamos, a primeira vez que lhe ouvia claramente a voz. Fiquei sempre na mesma posição e, ao que me lembro, com os olhos mais arregalados do mundo. Pensava: «Ele está feliz por me encontrar. Ele sabe o meu nome. Ele não só é bonito como está a estudar Sociologia.»
Querendo continuar tranquilamente a conversa, o deus grego convidou-me para tomar um café. Foi como se me tivessem dado um murro na cara. Senti-me desesperar na minha incredulidade. Agora era um fogo de artifício, com todo o seu ruído, que não me deixava pensar. «Ele está-te a convidar, ele quer passar tempo contigo.» Então tomei uma decisão com a plena consciência de estar a escolher entre dois caminhos na vida, uma coisa que não é todos os dias que acontece. Olhei diretamente para os olhos dele, respondi «Não», voltei as costas para ele e comecei a andar.
No segundo a seguir comecei a sentir a anestesia passar. As minhas pernas tremiam mas já não era por causa dele. Tive pena da tristeza que vi sobre o seu rosto, uma sombra assustadora que o envolveu inteiramente. Quis encontrar uma explicação para o que tinha acabado de fazer e não a tinha. Senti que Lisboa era uma cidade sem refúgios mas não sabia que qualidade havia a identificar nisso. A única coisa em que conseguia pensar era que ele vinha do passado e que, deus grego ou não, o meu passado terminava ali. Nunca o voltei a encontrar.