7 de abril de 2019
acontece por vezes cruzar-me com pessoas de quem gosto, mas que não me apetece cumprimentar. no supermercado, na fila para o cinema, na rua, nos transportes, na praia, há sítios que parecem exigir a nossa liberdade por via do anonimato. não há desprezo ou desconsideração nestas ocasiões, apenas o desejo de estar só, concentrada no que estou a fazer, quer isso seja caminhar ou comprar legumes. sou nefelibata, os devaneios na deriva pela cidade são constantes e necessários. quando me apanham, fico envergonhada, acomete-me um certo desespero por me faltarem as palavras ou por receio de perder o fio à meada dos meus pensamentos, muitas vezes textos a fazerem-se em pleno éter, alguns posteriormente concretizados, outros devorados pela impotência, pela falta de coragem ou de arrogância. o contrário também me acontece, vejo pessoas de quem não conheço senão simpatia evitarem cruzar olhares comigo ou serem surpreendidas num momento de intimidade. como podemos pretender salvaguardar a nossa intimidade nos locais públicos? o direito à intimidade está circunscrito a uma esfera restrita da vida privada, na qual, é bem suposto, ninguém pode penetrar sem consentimento. nesse sentido, ela é inviolável e, como diz Hannah Arendt, é regulada pelo princípio da exclusividade. a intimidade é a esfera que comanda as escolhas pessoais e legalmente, o que constitui a vida íntima das pessoas não é de interesse público. porque é exclusiva, sente-se lesada quando é invadida sem autorização. ora, hoje em dia (que do passado não sei), o acesso à intimidade quotidiana exerce sobre nós uma atração tremenda. queremos olhar para dentro das casas, conhecer as biografias, participar dos segredos, num movimento em direção ao ínfimo, ao insignificante, ao parcial. ao mesmo tempo que se circunscreve cirurgicamente a intimidade ao domínio do intangível, queremos penetrar o mais possível a sua esfera. em que nos transformamos quando surpreendemos e vigiamos o íntimo? o choque da familiaridade conforta-nos e seduz-nos e a estranheza entre nós e os outros cessa.
22 de março de 2019
Acorda-me, para eu dormir em ti
Acorda os meus mundos para ti
Acende as minhas estrelas mortas mais perto de ti
Sonha-me fora deste mundo
Leva-me para casa, para a casa das chamas
Faz-me nascer, vive-me, mata-me mais perto de ti
Mais perto do Centro onde se nasce
Leva-me para onde for mais quente
Leva-me para mais perto, mais perto de ti.
Gunnar Ekelof
Acorda os meus mundos para ti
Acende as minhas estrelas mortas mais perto de ti
Sonha-me fora deste mundo
Leva-me para casa, para a casa das chamas
Faz-me nascer, vive-me, mata-me mais perto de ti
Mais perto do Centro onde se nasce
Leva-me para onde for mais quente
Leva-me para mais perto, mais perto de ti.
Gunnar Ekelof
21 de março de 2019
20 de março de 2019
18 de março de 2019
Não é que me ocorra muitas vezes, mas já dei por mim a pensar em voltar a viver na minha terra natal, de onde, em tempos, fugi a sete pés assim que pude. Estar perto do campo, das belas paisagens, do silêncio, dos céus recheados de estrelas, da família, e, ao mesmo tempo, viver numa pequena cidade onde nada falta, a uma hora de Lisboa, são atrativos suficientes para me fazerem sonhar. Sempre que o penso, no entanto, alguma coisa desmente os meus devaneios e regresso ao meu estado natural: Lisboa é a minha casa. Foi o que aconteceu recentemente, no dia da primeira greve mundial estudantil, quando, através do Facebook, me foram chegando notícias e fotografias de greves em todo o país. Qual não é o meu espanto ao descobrir que em Torres Novas nenhuma das escolas secundárias fez greve, tendo o dia sido assinalado com aquilo a que chamaram, à tão boa maneira ribatejana, uma «tertúlia» em defesa do ambiente, mais exatamente sobre a Ribeira da Boa Água, que há anos sofre consecutivas descargas poluentes por parte da empresa Fabrióleo.
A «tertúlia» era composta por um painel de oradores e por uma plateia de alunos e professores. Ora, que nem o mais pequeno grupo de alunos se tenha motivado e organizado em torno da causa mundial, com o apoio dos pais e dos professores, é assustador. Demonstra que, apesar da brutal modernização, nesta pequena cidade se continua a viver como há trinta anos atrás, ou seja, fora do âmbito do possível. A ocasião de se organizar e participar numa greve, com o desafio que acarreta de ocupar um espaço fora do roteiro banal das suas vidas de estudantes, um espaço de união e de construção, mas sobretudo de transgressão positiva, em prol de uma causa, foi perdida. Mais grave se torna ao sabermos que paredes meias se vive uma situação de crime ambiental que, afetando a Ribeira, afeta o rio Almonda e, por sua vez, o rio Tejo.
Por contraste, em Lisboa foram dez mil, no Porto cerca de um milhar em representação de meia centena de escolas: ao todo, em Portugal, pelo menos 26 cidades aderiram a esta ação. Promovendo palavras de ordem como "Justiça climática", "Não há planeta B" ou advertindo que "O capitalismo não é verde", estes grevistas pelo clima foram irrazoáveis. Não seguiram as regras, não ouviram, não pararam. Para eles, estes são os dias em que podem estar a reescrever o que é possível e isso, indo contra aquilo que veem nas notícias, ouvem nos parlamentos e nas instituições e provavelmente, em casa. Qual é o segredo deles? A ação. Nada é possível sem ação e quase tudo é possível quando nos levantamos juntos.
Não me entendam mal: uma palestra é melhor do que nada, já para não dizer que todo o trabalho do Basta e de pessoas como Arlindo Marques, o "Guardião do Tejo", é de louvar. Conheço alguns torrejanos a quem não hesito em chamar de heróis. Mas há qualquer coisa errada no reino da Dinamarca quando se falha o principal propósito da juventude. São únicos e especiais os torrejanos, fechados nas suas próprias histórias.
A «tertúlia» era composta por um painel de oradores e por uma plateia de alunos e professores. Ora, que nem o mais pequeno grupo de alunos se tenha motivado e organizado em torno da causa mundial, com o apoio dos pais e dos professores, é assustador. Demonstra que, apesar da brutal modernização, nesta pequena cidade se continua a viver como há trinta anos atrás, ou seja, fora do âmbito do possível. A ocasião de se organizar e participar numa greve, com o desafio que acarreta de ocupar um espaço fora do roteiro banal das suas vidas de estudantes, um espaço de união e de construção, mas sobretudo de transgressão positiva, em prol de uma causa, foi perdida. Mais grave se torna ao sabermos que paredes meias se vive uma situação de crime ambiental que, afetando a Ribeira, afeta o rio Almonda e, por sua vez, o rio Tejo.
Por contraste, em Lisboa foram dez mil, no Porto cerca de um milhar em representação de meia centena de escolas: ao todo, em Portugal, pelo menos 26 cidades aderiram a esta ação. Promovendo palavras de ordem como "Justiça climática", "Não há planeta B" ou advertindo que "O capitalismo não é verde", estes grevistas pelo clima foram irrazoáveis. Não seguiram as regras, não ouviram, não pararam. Para eles, estes são os dias em que podem estar a reescrever o que é possível e isso, indo contra aquilo que veem nas notícias, ouvem nos parlamentos e nas instituições e provavelmente, em casa. Qual é o segredo deles? A ação. Nada é possível sem ação e quase tudo é possível quando nos levantamos juntos.
Não me entendam mal: uma palestra é melhor do que nada, já para não dizer que todo o trabalho do Basta e de pessoas como Arlindo Marques, o "Guardião do Tejo", é de louvar. Conheço alguns torrejanos a quem não hesito em chamar de heróis. Mas há qualquer coisa errada no reino da Dinamarca quando se falha o principal propósito da juventude. São únicos e especiais os torrejanos, fechados nas suas próprias histórias.
9 de março de 2019
1 de março de 2019
30 de janeiro de 2019
O património do silêncio. Os livros acumulam-se pela casa. Cobrem as
paredes, enchem as prateleiras dos armários. Aguardam-nos calados com
suas páginas apertadas onde o pó e a humidade se infiltram.
Disciplinados, exibem apenas o seu dorso curvo coberto de pele, ou então
magro, estreito, de papel. A memória é um silêncio que espera, uma
provação da paciência.
Ana Hatherly, in Tisanas.
Ana Hatherly, in Tisanas.
23 de janeiro de 2019
14 de janeiro de 2019
Se fazer a história e contar uma história são, na verdade, um só e mesmo gesto, então o próprio escritor encontra-se face a uma tarefa paradoxal. Vai ter que acreditar unicamente e de modo intransigente na literatura - quer dizer na perda do fogo, vai precisar de se esquecer de si-próprio na história que tece em redor das suas personagens e, contudo, nem que seja a esse preço, vai precisar de discernir no fundo do esquecimento os brilhos de luz negra que provêm do mistério perdido.
Giorgio Agamben, O fogo e a História.
Giorgio Agamben, O fogo e a História.
31 de dezembro de 2018
Pela primeira vez desde que vivo sozinha (há mais de 20 anos), não fiz decorações de Natal em casa. Não montei a árvore nem pus o presépio cá fora, não pendurei a grinalda na porta e a rena na parede, não acendi as luzes. A perda da minha mãe trouxe-me uma liberdade sem orgulho, que gozo perplexa. Ao mesmo tempo que quero deixar cair todos os enfeites, sinto o exemplo dela a seguir cada vez com mais força. Se, por um lado, rejeito convenções, por outro, é com os outros que vejo que faz sentido estar. Tudo o que me rouba tempo para a partilha é fútil. Creio inclusivé que a minha escrita beneficiaria muito disso: não basta ler e escrever, há que dar-se ao confronto. E construir.
20 de dezembro de 2018
How much better is silence; the coffee cup, the table. How much better
to sit by myself like the solitary sea-bird that opens its wings on the
stake. Let me sit here for ever with bare things, this coffee cup, this
knife, this fork, things in themselves, myself being myself.
Virginia Woolf, The Waves.
Virginia Woolf, The Waves.
19 de dezembro de 2018
desde que escrevo no tinyletter que praticamente deixei de escrever no blogue, desobedecendo às minhas próprias regras destinadas a manter, contra a vulgaridade, o fel e a mediania quotidianos, uma disciplina de escrita. escrever estas cartas implica, em princípio, saber a quem se escreve. não é porém a ideia de relação que me atrai, mas antes a ideia de permanecer quase incógnita e de assim, sem dúvida, poder abordar ou desenvolver assuntos difíceis, que exigem o meu investimento total. são afinal esses os assuntos que me apelam obstinadamente, é a eles que pertenço e não o contrário. creio que, por isso, acabarei por começar a escrever sob pseudónimo. é uma ideia que não deixa de me perseguir. na altura em que os blogues surgiram usei um, que apenas alguns amigos conheciam. depois deixei de escrever. deixei de escrever totalmente, num momento de rutura perante o que até então tinha escrito, a meu ver superficial. quando voltei a escrever, debati-me com a necessidade de publicar o que até ali escondia de todos os olhares. comecei a publicar neste blogue, que já foi anónimo e já foi privado. um amigo, que me desafiou a alimentar e a investir mais na escrita — e que entretanto, é curioso, deixou de me ler, num impulso contra um dos meus textos — insistiu comigo sobre ser preferível dar a ver, deixando as palavras seguirem o seu curso, mas sem orfandade. concordei. contudo, interessa-me desaparecer totalmente na escrita. gosto que não se saiba quem sou — e portanto que não haja qualquer possibilidade de emitir juízos sobre a minha vida, expor as minhas ligações e fazer prejuízo quanto aos meus interesses —, tanto quanto gosto de ter um espetro de leitores reduzido, que — imagino — lêem o que lhes envio sem prestar grande atenção.
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