4 de julho de 2016
contrariando o movimento habitual, Miguel levantou-se e abriu a janela para fumar um cigarro. nesse momento, uma chuvada intensa cai, muito embora, desde há meses, o tempo fosse de secura. secretamente sabia-se fora do mundo. o exílio era modesto, porém, bem definido e não havia nada que contrariasse a sua lógica e portanto o aligeirasse. dito isto, nenhuma ânsia o perturbava: na cela podia viver-se perpetuamente, sem a aflição dos outros. nas suas paredes lisas, nenhum relógio soava e os desejos caíam como prumas no vento. naturalmente era ingénuo pois o tédio trespassava-o como um relâmpago.
3 de julho de 2016
isto passou-se no final de março, a primavera mostrava-se sem cuidado e por toda a parte, e eles, dóceis e ansiosos, submetiam-se a ela. vindo da sala, onde tinha estado quase toda a manhã a falar com a dona Elisa Berta, Horácio desce a escada e tropeça já no último degrau, rindo depois para disfarçar o susto. saíram os três, atravessaram a feira e o parque rapidamente, caminhando sempre em frente através das barracas de queijo e presunto, dos ramos de alfazema enrolados em papel manteiga, das tílias, dos plátanos e dos castanheiros, e entraram na igreja. isto não levou mais do que quinze, vinte minutos. Maria e Horácio sentaram-se na segunda fila atrás, mergulhada na escuridão, o que surpreendeu Catarina, que pretendia sentar-se com eles logo à frente. hesitou e a hesitação chegou para expor o segredo em plena luz do dia. Catarina em pé, sem decidir se se juntava a eles na segunda fila, ou se os deixava a sós e prosseguia caminho em direção ao altar como havia pensado, Maria corada a apertar as luvas entre as mãos e Horácio incapaz de esconder a felicidade que antecipava um momento a sós com Maria, ou seja, sem Catarina. com plena consciência no papel que desempenhava nos acontecimentos,
Maria estava vestida de negro, mas tinha pintado os olhos e os lábios. nenhum deles pronunciou palavra.
com a mesma naturalidade, uma alegria alucinante, muito próxima do sonho, regressou e fixou-se ameaçadoramente. tudo estava deserto. a matéria acumulada em enorme espessura difundiu-se como sujidade e esvaziou-se. a realidade prosseguia por sua própria conta e risco, como uma contradição ou um animal inocente. mas o seu coração, transbordante, através de todas as metamorfoses mostrava agora a sua repugnância. na verdade, sempre lá tinha estado.
2 de julho de 2016
30 de junho de 2016
27 de junho de 2016
um casal de turistas de banho tomado e perfumados, ela com bijuteria cara e maquilhada, ele de fato azul, gravata e lenço, ambos loiros, passa ao lado de dois caixotes de lixo cheios rodeados de um monte de sacos de lixo empilhados num bairro lisboeta. a acreditar na sorte e ao que parece, não os viram. sobem a colina sorrindo um ao outro, alheados da cidade onde passeiam, de visita. passando ao seu lado, desvio o olhar, e é isso o que de mais fecundo e decisivo tenho, precisamente agora.
é certamente admirável. previ o fracasso desde sempre, mas não me atrevi a perguntar pela estranheza que ocorre como um gemido fruto de uma epidemia. sou culpada. tenho uma língua.
é certamente admirável. previ o fracasso desde sempre, mas não me atrevi a perguntar pela estranheza que ocorre como um gemido fruto de uma epidemia. sou culpada. tenho uma língua.
24 de junho de 2016
mal o disse, bateu nas coxas, no entanto com uma eficácia duvidosa, resultado de uma dieta de emagrecimento. face a face, lúcidos como um diabo, observavam a mutação daquilo que não sabiam e nenhuma explicação parecia suficiente. eram agora reféns do momento. qualquer palavra teria sido alvo de cinismo e, por isso, o silêncio prevaleceu, ainda que nele houvesse um efeito surpresa: viram-se envelhecer com uma indecência indigna, de repente.
23 de junho de 2016
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