A rapariga que não conseguia ajoelhar-se e que afinal aprendeu a fazê-lo no tapete áspero de fibra de coco de uma casa de banho desarrumada. Mas estas coisas são ainda mais íntimas do que as coisas sexuais.
Etty Hillesum, Diário 1941-43.
19 de junho de 2014
18 de junho de 2014
Escrevo várias horas por dia há vários dias e quando encontro uma pessoa que me pergunta o que ando eu a fazer respondo, depois de uma breve hesitação, «nada». Quem não publica não escreve e eu hesito porque quero formular uma resposta que evite em definitivo a pergunta que se segue, «onde posso ler o que escreves?», a que daria uma resposta estruturada desviando vigorosamente o interesse e sem fornecer quaisquer indicações.
16 de junho de 2014
Viagem de comboio entre Braga e Porto, verão de 2013. Enquanto estamos parados em Terrugem, um rapaz montado num enorme cavalo castanho luzidio atravessa a estação e sai para a vila. Já com o comboio em andamento reparo ao longe, entre o verde das vinhas, das figueiras, dos pinheiros, dos pomares, a pedra dos muros e das casas, diante de uma casa grande à beira da estrada que atravessa a pequena aldeia pela qual passamos, está montada ao sol uma grande mesa para o jantar, com muitas cadeiras à volta. Apetece-me entrar nos bosques e arrancar eucaliptos. Vim para os bosques para arrancar eucaliptos deliberadamente.
Água a correr, um vespão, uma lagartixa, rãs, outros insetos, pássaros, coelhos, galinhas, portas que se abrem e se fecham, as maçanetas dessas portas que rodam, passos e o restolhar das batinas, orações, cânticos, fogo a crepitar nas lareiras e na cozinha, pratos, talheres, vento, instrumentos agrícolas, a terra a abrir-se pelo machado, folhas que caem: o silêncio neste mosteiro correspondia apenas à ausência da fala, uma espécie de conformidade ao tempo, esse perversamente auditivo.
Depois da minha visita peço um copo com água. O segurança, simpático e familiar, faz-me descer à cozinha dos funcionários; fico contente por poder conhecer também estes espaços, ocultos, destinados ao trabalho de hoje. Apesar de estar uma garrafa de água do Luso em cima do balcão, abre a torneira para encher o copo que me vai oferecer, o que me parece uma indelicadeza enquanto reparo ao mesmo tempo que a água que cai no copo tem uma limpidez estranha, uma transparência quase perturbante. E sabe bem. À medida que a bebo, recordo qualquer coisa que não consigo distinguir, como se a cada golo recuasse com assombro de regresso a um gesto comum, só meu. Estou quase no fim quando o segurança revela que é água da fonte, que toda a água que abastece o mosteiro provém dela e que os funcionários - diz risonho e satisfeito - enchem garrafões de cinco litros para levar para casa. A água da fonte é a água do poço da casa dos meus bisavós, e não sei se o tempo que vivi morrerá comigo ou se é absoluto como o vejo, mas sou ainda essa criança, diante do mesmo poço e da mesma água. O táxi chega, nunca vi um táxi assim. É um brilhante Mercedes negro, sem placa nem número, sobe a ladeira a grande velocidade e para à frente da entrada principal do mosteiro. O taxista sai, abre-me a porta e chega o banco ao lado do condutor para a frente, para que eu fique com mais espaço atrás. Despeço-me do segurança com um aperto de mão e quando a porta do táxi se fecha sou fulminada por uma melancolia cortante, que me envolve como uma serpente mata. Procuro aflita a razão mas não consigo evitar comover-me. Sei apenas que me despeço da beleza e que o silêncio que subitamente se abate dentro do carro me submerge.
Depois da minha visita peço um copo com água. O segurança, simpático e familiar, faz-me descer à cozinha dos funcionários; fico contente por poder conhecer também estes espaços, ocultos, destinados ao trabalho de hoje. Apesar de estar uma garrafa de água do Luso em cima do balcão, abre a torneira para encher o copo que me vai oferecer, o que me parece uma indelicadeza enquanto reparo ao mesmo tempo que a água que cai no copo tem uma limpidez estranha, uma transparência quase perturbante. E sabe bem. À medida que a bebo, recordo qualquer coisa que não consigo distinguir, como se a cada golo recuasse com assombro de regresso a um gesto comum, só meu. Estou quase no fim quando o segurança revela que é água da fonte, que toda a água que abastece o mosteiro provém dela e que os funcionários - diz risonho e satisfeito - enchem garrafões de cinco litros para levar para casa. A água da fonte é a água do poço da casa dos meus bisavós, e não sei se o tempo que vivi morrerá comigo ou se é absoluto como o vejo, mas sou ainda essa criança, diante do mesmo poço e da mesma água. O táxi chega, nunca vi um táxi assim. É um brilhante Mercedes negro, sem placa nem número, sobe a ladeira a grande velocidade e para à frente da entrada principal do mosteiro. O taxista sai, abre-me a porta e chega o banco ao lado do condutor para a frente, para que eu fique com mais espaço atrás. Despeço-me do segurança com um aperto de mão e quando a porta do táxi se fecha sou fulminada por uma melancolia cortante, que me envolve como uma serpente mata. Procuro aflita a razão mas não consigo evitar comover-me. Sei apenas que me despeço da beleza e que o silêncio que subitamente se abate dentro do carro me submerge.
15 de junho de 2014
Por vezes, mesmo quando escrevo no meu diário, hesito entre manter segredos e escrever sem explicar nada. A incerteza de chegar a tempo de destruir tudo antes que alguém conheça a miséria da minha infância que perdura, domina-me. Sou como os tementes a deus, desconfio da disciplina como do diabo que macula o que é puro e ao mesmo tempo estou presa a ela, como a uma oração.
Coisas que gostaria de corrigir:
À pergunta «Mas como é que isso se faz?» gostaria de ter respondido, procurando o olhar da única pessoa que pareceu entender aquilo que a motivou, «Queres responder T.?».
Em vez de um impropério, assumir o nada.
Ter escrito mais.
Em vez de silêncio, a gargalhada que abafei.
Que peremptória, lúcida, sagaz, não desejasse salvação, e fosse modesta a esperança que inesperadamente faz vibrar a morte.
À pergunta «Mas como é que isso se faz?» gostaria de ter respondido, procurando o olhar da única pessoa que pareceu entender aquilo que a motivou, «Queres responder T.?».
Em vez de um impropério, assumir o nada.
Ter escrito mais.
Em vez de silêncio, a gargalhada que abafei.
Que peremptória, lúcida, sagaz, não desejasse salvação, e fosse modesta a esperança que inesperadamente faz vibrar a morte.
13 de junho de 2014
Foi a escrita que me revelou os homens e nada mais.
Corpos com devastações assombrosas
E um sorriso delicado a cobrir as extremidades
Embora com algumas, premeditadas, falhas
Através das quais se mostram
Fortalecidos por silêncios implacáveis.
Foi-lhes destinada a mais ingénua malícia
De tal modo que quase sangra
Por gozar de uma atenção vegetal,
Divina.
As suas vozes tremem mas quem ouve o seu tremor?
¿Para onde vão estes fogos
Onde o tempo sucumbiu
E continua a sucumbir
Para sempre.
Toda a carne é muito mansa,
Como as torturas da memória e da certeza.
O grito espantoso, infatigável,
Possui a ociosa luminosidade das vagas
Repelindo obstinadamente o vácuo
E intoleravelmente a própria praia.
Corpos com devastações assombrosas
E um sorriso delicado a cobrir as extremidades
Embora com algumas, premeditadas, falhas
Através das quais se mostram
Fortalecidos por silêncios implacáveis.
Foi-lhes destinada a mais ingénua malícia
De tal modo que quase sangra
Por gozar de uma atenção vegetal,
Divina.
As suas vozes tremem mas quem ouve o seu tremor?
¿Para onde vão estes fogos
Onde o tempo sucumbiu
E continua a sucumbir
Para sempre.
Toda a carne é muito mansa,
Como as torturas da memória e da certeza.
O grito espantoso, infatigável,
Possui a ociosa luminosidade das vagas
Repelindo obstinadamente o vácuo
E intoleravelmente a própria praia.
12 de junho de 2014
9 de junho de 2014
Como os habitantes da cidade que Chihiro visita, perdi a memória do meu nome e não posso regressar àquilo que me pertence. Há no meu corpo um tremor ligeiro, assim as folhas de uma árvore cuja imobilidade é permanentemente perturbada por elementos exteriores: o tabaco, o jejum.
A loucura espreita, insidiosa e leve. O sol que brilhe. O mar que receba os rios. Viverei como as moscas, que no seu movimento descrevem o padrão insignificante do silêncio.
A loucura espreita, insidiosa e leve. O sol que brilhe. O mar que receba os rios. Viverei como as moscas, que no seu movimento descrevem o padrão insignificante do silêncio.
8 de junho de 2014
3 de junho de 2014
Será certamente pueril da minha parte mas nunca até ontem me tinha apercebido que nada me revolta tanto quanto a morte. Parece uma constatação evidente, por ser a única coisa em relação à qual somos verdadeiramente impotentes, mas nunca tinha pensado nisso de forma tão inequívoca como ontem perante um caixão, a família do morto, e um padre que falava de felicidade e de paraíso a apontar com os dois dedos indicadores para o céu. Talvez porque o morto não me pertencesse tivesse sido possível pensar. Não me lembro de alguma vez ter falado com alguém sobre fé nem sobre a ausência dela, a minha. Não creio que se possa falar disso e portanto não percebo como se podem fazer palestras sobre isso. No fundo não acredito que alguma palavra tenha o poder de evangelizar. Muito menos quando morre alguém que amamos. Nesses momentos devia respeitar-se o silêncio que fica.
1 de junho de 2014
Desço a colina ao encontro dos braços de sol - soberanos, maciços - desta manhã, animada pelas roupas leves que vesti, pelo vento fresco que toca a superfície da pele do pescoço e das pernas e pelo rumor dos passos e da respiração das pessoas a entrar e a sair do comboio à beira rio. Quando entro no jardim - circular, que outra forma mais bela para um jardim? -, um cheiro atordoa-me ao ponto de me fazer parar, como um acidente.
«De onde vem de onde vem?» penso num brado abafado, enquanto percorro com dificuldade um obscuro túnel temporal cheio de lapsos e desvios insidiosos. E a dificuldade é imensa. Essa luta frágil, oca, frívola, propagava a leviandade que atrás me tinha trazido alegria. Não sabia onde estava e não podia caminhar.
Encontrei o cheiro não sei quanto tempo depois e quase nenhuma imagem. Um som abafado de crianças e de água e outro cheiro, a cloro, razão da dificuldade em reunir-me à memória do perfume deste jasmim, pois estava misturado. Sobre a ponte, que atravessava todos os dias a caminho da piscina, um tapete vermelho com bolas salientes onde me demorava a passar, os peixes dentro da água verde e os chorões debruçados sobre o rio. É sempre a mesma vertigem e sempre o mesmo inconsolado regresso a casa.
«De onde vem de onde vem?» penso num brado abafado, enquanto percorro com dificuldade um obscuro túnel temporal cheio de lapsos e desvios insidiosos. E a dificuldade é imensa. Essa luta frágil, oca, frívola, propagava a leviandade que atrás me tinha trazido alegria. Não sabia onde estava e não podia caminhar.
Encontrei o cheiro não sei quanto tempo depois e quase nenhuma imagem. Um som abafado de crianças e de água e outro cheiro, a cloro, razão da dificuldade em reunir-me à memória do perfume deste jasmim, pois estava misturado. Sobre a ponte, que atravessava todos os dias a caminho da piscina, um tapete vermelho com bolas salientes onde me demorava a passar, os peixes dentro da água verde e os chorões debruçados sobre o rio. É sempre a mesma vertigem e sempre o mesmo inconsolado regresso a casa.
31 de maio de 2014
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