Com a passagem do tempo, a exigência do dia-a-dia armadilhado por todo o tipo de violências, e, sobretudo, com o caráter implacável da sobrevivência, quase tudo se tornou relativo, dispensável, e, imersa em notícias que, assustadoras ou obscenas, se tornaram triviais, vivo a minha vida de modo muito pacato e frugal, em paz, embora certamente demasiado restrito. Em contraste com o que aconteceu toda a minha vida, o que me comove passou a ser excecional, a pronunciar-se com uma acuidade que não se confunde com a empatia, e muito menos com a megalomania da infâmia e do horror. É certo que não vejo o que os outros veem. Que evito e me resguardo das imagens, bem como do ruído. Mas é a degradação voluntária que observo que determina a minha impassibilidade glacial, essa, talvez involuntária, com todas as suas consequências.
O que me comove?
Hoje, como há dez anos, o corpo de um bebé morto à beira-mar.
Integrei essa imagem na minha peça quando a escrevi, com reservas que ainda mantenho. Se não a consigo ver, por que motivo ostentá-la? Esta, muito mais que a outra pergunta, que normalmente se impõe, sobre a legitimidade de usar este tipo de imagens em objetos artísticos, ou seja, este corpo, me incomodava e me incomoda. Sem dúvida. Este bebé não pode nunca ser subjugado às leis da representação. A vida dele, a vida perdida, o luto irremissível pela sua vida perdida, lembra-nos, ou devia lembrar-nos, que não há para nós redenção.