6 de outubro de 2024

“Era a segunda parte do sonho: o medo de sonhar. Ou de recordar, que é o mesmo.” 

Estas frases extraordinárias de César Aira estão na novela A Prova, a segunda que leio dele. Duas coisas se dizem aqui: que na segunda parte dos sonhos, aquela — a única — de que nos lembramos, aquilo com que sonhamos é com o medo de saber que estamos a sonhar. Que é isso, no fundo, que nos acorda de todos os sonhos, bons ou maus: o medo de descobrir que estamos a sonhar. Talvez o ato de sonhar seja, ele próprio, esse pavor de se descobrir sonhando. A outra, que sonhar é o mesmo que recordar, ou seja, que o ato de sonhar é, tal como o ato de recordar, um ato de temor, de reverência e angústia. Porventura (seria preciso perguntar-lhe), aquilo que tememos recordar é também aquilo com que tememos sonhar. O medo de recordar seria, para dizer de modo simples, medo de ver — pois o sonho vê. Muitas vezes vive-se assim: não queremos ver para não recordar. Temos medo de sonhar porque temos medo de, mais tarde, nos lembrarmos que sonhámos. Não há recordação mais violenta.
“La colère c’est le signe qu’on est impuissant.”

“Je cherche pas à faire jolie. Je cherche à faire juste.” 

“Puisque je l’ai vécue, donc, ça existe. C’est humain. Alors, ça n’est pas honteux.”

“Il y a de la honte a éprouver la honte.”

Annie Ernaux

3 de outubro de 2024

Um amigo envia-me um excerto do diário de Franz Kafka, de 1915, onde ao longo de quase dois meses, entre janeiro e março, o escritor se lamenta com o flagelo da ausência da escrita. Fala de «incapacidade», de «paralisação», «impotência», de «perda» inexorável. Os seus esforços perante a página em branco são um «tormento sem fim», como se fosse um instrumento de tortura, o «tempo voa», o apetite desaparece e o medo — medo de se ter deixado consumir a sobreviver e de não voltar a conseguir reunir forças para escrever — sonda. Para agradecer ao meu amigo, na resposta, esforço-me a procurar explicar em duas frases que nos últimos tempos voltei a escrever no diário sobre aquilo que, de modo rudimentar, nomeei «falta de linguagem», e digo-lhe que, na última entrada sobre esse assunto, escrevi que a falta de linguagem era o assunto sobre o qual mais tinha escrito no diário desde que — aos dez anos, isso não disse — comecei a escrever um diário, e o motivo pelo qual — voltei a não dizer — leio os livros que leio, escolhi o curso que escolhi, tenho o trabalho que tenho e olho para trás, não para dizer o que não foi dito, mas para dar a ver o que não é dito. Podia ainda ter acrescentado que a falta de linguagem foi a razão que me tornou refém de amores desesperados e totais, mas a seguir acrescento apenas que, hoje mesmo, acordei a pensar numa frase que anotei ontem no blogue, retirada de uma entrevista de 2017 a Rachel Cusk que andei a reler. O que Cusk diz não é sobre a falta de linguagem nem sobre a ausência da escrita. É uma frase brilhante que conotei com uma teimosia pessoal que, com frequência, perturba o encontro dos meus textos com outros escritores (embora não com outros leitores): a necessidade de preencher o texto com referências. Pelo contrário, quando escrevo, tenho tendência para desprezar os acessórios da descrição e quero eliminar ou, se possível, sequer trazer, aquilo de que não compreendo a exigência no texto e a que Cusk elegantemente chama o conhecimento útil, isto é, supérfluo, a começar, com todo o zelo, pelo uso do eu, de que hoje se faz permanente elogio como se na vida não houvesse mais que fazer. Resumindo, quando escrevo não sou levada a preencher, mas sim a esvaziar. Essa tendência traz-me muitas vezes o desconsolo de descobrir que a escrita não passou a barreira, que o essencial falta. Não a linguagem utilitária, mas precisamente a outra, que perfura espaço, tempo, ar, impasses, infortúnios, alegrias, gosto, pele, carne, rios de sangue e ossos, em direção ao coração. É a busca por essa linguagem que falta que me obstina a reescrever há anos os mesmos textos, ao ponto de já me parecer ser apenas um e sempre o mesmo texto. Acrescento, então, sem consumir o tempo do meu amigo com explicações a que nada deve, que por acaso acordei a lembrar-me de uma frase que li numa entrevista. Que acordei a pensar não exatamente na frase, mas que, estando sozinha a escrever, a tentar escrever, a não conseguir escrever, a ser povoada de escrita enquanto a vida passa a curvar-me as costas, como se estivéssemos cada um no seu precipício a falar para a escarpa em face, inabordável como a nossa, ou para o vazio, as vozes corajosas dos escritores que são sinceros acompanham-me. Ao procurar o texto cortado na imagem, volto a encontrar uma dessas frases: "De vez em quando sinto uma infelicidade que quase me desmembra e, ao mesmo tempo, estou convencido da sua necessidade e da existência de um objetivo para o qual nos encaminhamos passando por todo o tipo de infelicidade." 

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JANUARY 20: The end of writing. When will it take me up again?

JANUARY 29: Again tried to write, virtually useless.

JANUARY 30: The old incapacity. Interrupted my writing for barely ten days and already cast out. Once again prodigious efforts stand before me. You have to dive down, as it were, and sink more rapidly than that which sinks in advance of you.

FEBRUARY 7: Complete standstill. Unending torments.

MARCH 11: How time flies; another ten days and I have achieved nothing. It doesn’t come off. A page now and then is successful, but I can’t keep it up, the next day I am powerless.

MARCH 13: Lack of appetite, fear of getting back late in the evening; but above all the thought that I wrote nothing yesterday, that I keep getting farther and farther from it, and am in danger of losing everything I have laboriously achieved these past six months. Provided proof of this by writing one and a half wretched pages of a new story that I have already decided to discard… Occasionally I feel an unhappiness that almost dismembers me, and at the same time am convinced of its necessity and of the existence of a goal to which one makes one’s way by undergoing every kind of unhappiness.