30 de agosto de 2024
Entrei na sala e estavam todos num círculo a olhar para a coisa. A coisa estava ao colo de uma das mulheres e aquela que deu à luz a coisa ofereceu-a ao homem. Mas o homem recusou pegar-lhe com um gesto da mão e virou o flanco à coisa. O homem disse: não tenho jeito, e colocou-se atrás da mulher que a tinha ao colo, olhando para a coisa. Quando disse isto, o homem ficou seco e definhou. A coisa não tinha nome. Estavam todos numa roda a olhar para ela e a passá-la de mão em mão, mas ninguém lhe queria dar um nome. Apesar de ser frágil, com sorrisos vaidosos e sem olhar uns para os outros, erguiam a coisa ao alto, pavoneavam formas originais de a segurar, nas mãos, nos braços, nas pernas, nos ombros. Se a coisa caísse, todos se quebrariam como cristal em infinitos pedaços que nunca mais voltariam a colar-se. Mas a coisa passava de mão em mão e todos riam enquanto a ofereciam sem dizer o seu nome. Estavam todos à espera que a coisa falasse, mas a coisa nada dizia e passava de mão em mão como se nada pudesse dizer.
28 de agosto de 2024
Quando éramos crianças comíamos flores. Elas apareciam e nós começávamos a demorar mais tempo a chegar a casa. Estávamos atentas às flores que podíamos comer, que sabíamos distinguir das que eram «venenosas», e que pendiam para o passeio de arbustos em quintais inacessíveis ou nasciam em bermas de estrada. Nem tudo na flor era comestível e os adultos ensinavam-nos o que e como as devíamos comer. As azedas eram as mais comuns. Apareciam logo em fevereiro, enchendo os campos de primaveras precoces, que cobriam de amarelo-pálido. Cortávamos o caule para as arrancar sem raiz e, desprezando a flor, mascávamos sem engolir um líquido ácido e transparente, quase desagradável, mas viciante, como a cola. De todas as flores que se seguiam a essas, primavera dentro, as minhas preferidas eram umas flores cor-de-laranja em forma de trompete, com umas antenas cor-de-rosa no interior. Nasciam já em cima do verão de uma espécie de trepadeira que pendia nos muros um pouco por toda a parte. Tínhamos de esperar que estivessem «maduras» para as apanhar, ou seja, grandes e quando o tom do cor-de-laranja se tornava escuro, quase vermelho. Nelas escondia-se uma espécie de mel, tão doce que estavam sempre cheias de formigas que havia que expulsar antes de sorver, com cuidado, para não danificar as pétalas que albergavam o licor. Soprávamos as formigas no silêncio cúmplice de quem está prestes a partilhar uma iguaria. Depois bebíamos como de um copo e, porque o prazer era curto, arrancávamos outra logo a seguir. Comíamos essas flores com voracidade e com pena de não conseguirmos chegar às mais altas uma vez colhidas as que conseguíamos alcançar. Comer flores era o que mais gostava de fazer na rua. Achava que estava a ser iniciada numa ciência secreta destinada aos sábios e aos alquimistas, o clube onde eu queria entrar para conhecer aquilo que, sendo invisível, na terra, na água, no ar e nas pessoas, mas também nos livros, onde exatamente tudo acontecia, fazia viver. Por isso quando íamos ao restaurante chinês, a Lisboa, escolhia a sobremesa que era uma flor, a flor que vinha do misterioso Oriente: uma flor cor-de-rosa, grande como uma magnólia, que os meus olhos enfeitiçados viam chegar em cima de um tabuleiro, no centro de uma pequena malga de cerâmica branca como uma nuvem. Sei que algures alguma criança continua a comer flores. Mas os adultos que continuam a ensiná-las são quem admiro. Quem se dedica a explicar-lhes minuciosamente como se faz para soprar as formigas e não danificar a flor, a que arbustos se pode subir e quais os que quebram apesar de parecerem bom apoio, como não devemos arrancar flores dos passeios, encharcadas de urina, mas apenas dos campos ou de lugares altos, que flores devemos escolher e aquelas em que não devemos sequer tocar, como os cardos-de-leite, cheios de espinhos, ou as papoilas, que morrem mal as arrancamos. São eles que enfrentam a comunhão, palavra imunda, como a natureza.
22 de agosto de 2024
13 de agosto de 2024
"Sus libros se nos aparecen como emanaciones de un sistema más amplio. Con todos los grandes escritores sucede lo mismo, pero en la mayoría ese mecanismo es virtual; en él fue real. Imaginemos que hubiera seguido con exclusividad el camino de las artes plásticas, del dibujo, o de la actuación. Supongamos, y es muy fácil suponerlo, que aun así hubiera seguido siendo Copi, el mismísimo Copi. En ese caso podemos imaginarnos que sus relatos existirían igual, en un estado que podríamos llamar “imaginario”. Serían algo así como “guiones” de otros gestos, estallarían en un punto, en un relámpago del pensamiento o de la vida. Ahí tocamos una condición propia de la literatura, una suerte de vacilación ontológica. No importa que la obra exista o no. No hay falacia más persistente y destructiva en el discurso sobre las artes que ésa de la importancia. El arte no es importante, ni siquiera es necesario; por el contrario, oscila en el borde de no ser, y las más de las veces, cuando más grande es, se esfuma. Supongamos el sistema-Copi en un Copi que no hubiera escrito una línea, ni dibujado un cuadrito, ni actuado, ni nada. Todo el sistema, con los rasgos que estamos tratando de discernir en él (la miniaturización, la velocidad, etc.) existirían lo mismo en un señor que viviera de la fortuna familiar o fuera diplomático o traficante de drogas. No existiría en su mente como una promesa incumplida (no se trata de fracaso o de ocio o de falta de realización), sino en ciertos gestos, en ciertas circunstancias, en lo que defectuosamente llamamos el Destino, en la superficie de su cuerpo y de su empleo del tiempo... Su tía paralítica no se habría transformado en la Mujer Sentada, porque no habría mujer sentada (aunque estaría la de Picasso), pero sí se habría transformado en la función que es la Mujer Sentada, y habría sido igualmente operativa en esa forma. Parece un ejercicio inútil de la fantasía, y seguramente lo es. Pero vale la pena pensarlo a la inversa: posar la vista en alguien cualquiera, no importa lo vulgar y anodino que sea, e imaginarse el sistema del que es soporte único e intransferible. Es un ejercicio de la fantasía igual de inútil, pero mucho más difícil, y nos da una idea, un atisbo, de lo que pudo querer decir Lautréamont: “La poesía debe ser hecha por todos, no por uno”. ¿Podemos imaginarnos ese mundo, de una inagotable riqueza literaria? Su mero planteo sirve para aminorar la “importancia” de la literatura. Más todavía: ese mundo excesivo, esa plétora barroca, es el único objeto que puede tener la literatura. En esta dirección nos alejamos de la consideración “material” del texto o la obra de arte en general. Ese tipo de crítica me parece errónea y nefasta. La literatura es una actividad fantasmática, sin materialidad alguna. ¿Qué clase de materia es la que podría no haber existido?"
Não sei de onde é, mas felizmente li, porque o A. publicou.
10 de agosto de 2024
Pouco após ter somado quarenta anos fui aprender a nadar. Apercebendo-se dos maus tratos do professor de natação que tive por volta dos seis anos, a maioria das mães retirou os filhos da aula e, depois do êxito insólito de ver os adultos confirmar que o que estava a acontecer era tão mau como eu achava, não voltei a querer aprender e ganhei um medo exagerado à água. Por um lado, a água era intimidante. Diziam que era perigosa, imprevisível. Que podia afogar-me. Que tinha de a respeitar. Por outro lado, não sabia nadar. Não tinha qualquer controlo corporal dentro de uma massa de água, de que acabava sempre a engolir grandes golfadas. Extremamente magra (a minha alcunha na escola era Olívia Palito), a força da água, no mar ou no rio, ganhava sempre. Quando, aos nove anos, se descobriu que era surda de um ouvido, e o médico aconselhou a não mergulhar ou frequentar a piscina, cheia de cloro, a sentença estava dada. Se na infância me senti aliviada por não ter de aprender a nadar, com os anos, para minha grande admiração, a impossibilidade de me movimentar dentro de água com à-vontade e segurança foi perfilando um desgosto profundo que me deixava desolada a cada vez que via água e, quanto mais longe ficava do professor de natação, melhor chegava à constatação surpreendente de que adoro água. A visão da água passou a ser um chamamento. Nos filmes, admirava os nadadores de longas distâncias que se salvam de prisões e de ilhas a nado e os namorados que se afastavam ao largo da costa para finalmente se entregarem um ao outro, longe dos olhares. Estive fascinada pelos saltos para a água, pela natação sincronizada, pelo mergulho, pelo pólo aquático e, claro, pela natação. Os corpos modelados, a aptidão em executar certas acrobacias, a elegância com que certos movimentos eram realizados, apesar de exigirem o emprego de uma força extraordinária, pertenciam ao domínio do ininteligível. Quando fiz quarenta anos, decidi que não morria sem saber nadar e inscrevi-me numas aulas para iniciantes na piscina do bairro. Todas as semanas lá ia eu, orgulhosíssima, com a minha touca, os óculos e o fato de banho de natação, nadar com crianças escoltadas por pais demasiado preocupados. Comecei sem saber praticamente nada e no final do ano sabia nadar a crawl e a bruços, conseguindo mesmo fazer a piscina toda duas ou três vezes. A apoteose chegou quando nadei no mar a primeira vez. Há um sentimento de compensação em perder o medo que não há em mais nada na vida.
Subscrever:
Mensagens (Atom)