O meu lugar preferido é a varanda da casa da minha avó. A extremidade do lado direito da varanda dava para a Serra e para o jardim da casa dos meus bisavós paternos, de onde vinha o perfume das rosas de Santa Teresinha, das laranjeiras e da hortelã. Havia uma bilha de barro ao fundo, onde a minha avó guardava água da fonte que um senhor vinha entregar-lhe a casa todas as semanas numa carrinha de caixa aberta. «Filha, vai lá abaixo depressa que é a água!» Nesta varanda dei os meus primeiros passos. No verão, a minha avó estendia colchões de praia e aí dormíamos, embalados pelos grilos e pelo rumor do vento no trigo. É das noites de verão que me chega a primeira suspeita de estar só. Noites em que a toada dos grilos era de tal modo ensurdecedora que me impedia de dormir e me levava a ir para a varanda procurar as estrelas e dar com o imperscrutável lugar negro de onde vinha o som. A amendoeira em frente parecia morrer no inverno, explodia de flores na primavera, abrigava pássaros, insetos, por vezes gatos, e dava tantas amêndoas que chegariam para alimentar a Vila inteira. Era um milagre.
Para lá dessa amendoeira, para lá dos telhados que a rodeavam, era o caminho que fazíamos até ao Colégio, muitas oliveiras, limoeiros, trigo, roseiras e amoreiras selvagens, algumas casas e a Serra sempre ao fundo, como uma onda prestes a engolir-nos. Da varanda da casa da minha avó vi várias vezes a Serra a arder. «Cheira a fogo!», gritava a minha avó muito antes dos bombeiros fazerem soar o alarme. À distância suficientemente confortável a que estávamos, todos os vizinhos corriam de um lado para o outro, como ela, na rua, para a janela e nas suas varandas, dando aviso e procurando o melhor ponto para o ver. Por vezes, a cinza enchia o ar. Quando havia cinza demais ela tapava-me a boca e eu tirava-lhe a mão da minha cara. Ela não insistia. Consoante o ano, a Serra ardia pouco tempo, muito tempo, pouca área, muita área. Do que me lembro com exatidão, é de ver pequenos fogos até certo ano, um ano em que nada se via da Serra senão chamas que arderam todo o dia, toda a noite e na manhã seguinte ainda queimavam, instalando em nós a desolação. Os adultos disseram-nos depois desse fogo que já não havia lobos na Serra. Nos dias de fogo, depois da inquietação inicial, a minha avó ficava encostada à ombreira da porta da cozinha comigo ao colo a olhar para ele. Não dizíamos quase nada.
O meu lugar preferido é a varanda da casa da minha avó em dias de sol. Quando era miúda, a minha avó sentava-me na varanda nos dias de sol e mexia-me na cabeça. Dizia que tinha de ver se tinha piolhos. Por vezes também dizia que tinha de me pentear, fazer os totós ou a trança, ou que era para medir a cabeça para o gorro de lã que havia de fazer. Mas quase sempre era para ver se tinha piolhos. Mal o sol começava a aparecer em fevereiro, ela começava a procurar piolhos. As azedas surgiam de um dia para o outro e espalhavam-se na paisagem como sardas, a terra transpirava acordando lentamente da gestação, as primeiras andorinhas chegavam aos beirais das casas, os cucos apareciam e voltavam a esconder-se como salteadores furtivos, ouviam-se os melros, a amendoeira floria, em certos dias, a Serra apresentava-se inteira, com contornos lilases e sem nevoeiro, e a minha avó mandava-me para a varanda depois do almoço para procurar piolhos. Ela mandava-me ficar quieta e eu fechava os olhos. Os seus dedos grossos e macios faziam uma leve pressão no meu couro cabeludo mole e deslizavam para os lados para separar fio por fio de cabelo, enquanto o sol nos aquecia. Procurando entre a cabeleira, ela afastava as mechas e demorava-se a repetir este gesto até chegar a hora de ter de me libertar para o Colégio.
Contornando a casa e virada para a Serra, a varanda era enorme. A extremidade do lado esquerdo dava acesso à escada que levava ao jardim, e à saída de casa. Os adultos tinham tanto medo que nos aproximássemos da escada que colocavam bilhas de gás a bloquear a passagem. Lá em baixo, o portão para a rua que acumulava camadas de tinta, agora branco, tinha um truque para ficar fechado, portanto, estava sempre aberto. Em todos os degraus da escada havia um vaso com uma planta diferente. Ela estava sempre de volta das plantas. Cortava, regava, transplantava, plantava, procurava e ensinava-nos a procurar bichos. Sabia de cor quando tinham sido plantadas, quando floresciam, se era pé que pegasse, se deviam ser transplantadas dos vasos para o jardim. As plantas toda a vida lhe desviaram a atenção da saudação à chegada ou à despedida das netas e foi apenas à medida que a velhice se instalou que ela se foi deixando ficar ao cimo da escada sem lhes tocar, a olhar para nós com uma expressão inefável atrás dos seus olhos muito azuis. Isso sempre me causou uma espécie de assombro. Não sei se é esta a palavra certa. É assombro o que sentimos quando, impotentes que somos, estamos a ver alguém desaparecer? Pergunto-me o que acontece nesses dias, às vezes poucos dias, outras vezes muitos dias. Não é possível falar sobre a inevitabilidade, o que diríamos para além de coisas absurdas? Ou vulgares. Correríamos o risco de cometer a vulgaridade de nos defendermos.
O meu lugar preferido é a varanda da casa da minha avó em dias de sol, com ela. Do nascer ao pôr do sol, se não houvesse nuvens, essa varanda era como a superfície de um lago onde a luz nascia e desmoronava até ser uma sombra, nós peixes vendo uma parcela do exterior a partir desse limiar: o sol, o céu, algumas árvores, pássaros, coelhos a saltar entre arbustos, a Serra e mais nada. E bastava. Nunca pude lamentar os processos de mudança, observar a mudança é o para que fui feita. A mágoa que se lhes associa, ligada ao declínio do que desaparece, conheci-a num momento isolado, transformador, ao qual é inútil regressar: o dia em que, da varanda da casa azul da minha avó, vi um mar de telhados de casas, vi que a amendoeira tinha desaparecido, que uma das metades da varanda, justamente a do lado direito, voltada para a Serra, estava agora fechada por uma divisória de imaculado alumínio branco. Percebi que tinha chegado essa altura, exclusiva de todas as coisas que existem. E ninguém sofria.
A minha avó fazia trocadilhos. «Queijo não o como nem o vejo.» «Vamos à deita que o sono está à espreita.» Cantava o Tenho dois amores do Marco Paulo ou o Recordar é viver do Vítor Espadinha enquanto fazia o almoço. E assobiava. Estava sempre a cantar e a assobiar. O rádio estava sempre ligado, um tijolo com duplo deck para cassetes em cuja antena estávamos terminantemente proibidas de tocar. O rádio antigo, que antes estava na sala de jantar, esteve anos debaixo das escadas porque, dizia a minha avó, «Tem de ir a arranjar.» Era maior que uma televisão, todo em madeira e com as colunas forradas em tecido rosa velho. Por cima do rádio novo, na cozinha, a minha avó tinha sempre um calendário da Nossa Senhora de Fátima, daqueles de arrancar os meses. Não tinha medo de me tirar os piolhos. Mandava-me ir para o sol e massajava-me a cabeça, matava um a um com os dedos. Deixava-me fazer tricôt com as agulhas dela quando estava a chover. E mexer no pedal da máquina de costura Singer. Chamava-me para ver o fogo. Todos os anos, na Serra que víamos da varanda. Eu saltava para o colo dela e ficava a ver a cinza que caía à nossa volta, o fogo no horizonte ao longe. A minha avó passou muito tempo encostada à ombreira da porta da cozinha comigo ao colo a olhar para o fogo.
Havia fogo debaixo da camilha. Na cozinha da minha avó havia uma mesa de camilha coberta com uma sarja verde escuro. Tinha quatro aberturas através das quais passávamos as pernas para apoiar os pés no círculo da camilha em baixo, no centro do qual havia um braseiro. Num braseiro o fogo nunca se levanta. As brasas são atiçadas, trocadas, sopradas, queimadas e nunca incendeiam. A cozinha inteira ficava quente apesar de não haver fogo, mas apenas estas brasas tapadas — escondidas — por um pano tão grosso. Quando é que acendes o braseiro avó?, ao que ela respondia prolongando a espera porque «tínhamos de poupar». Depois, um dia, eu chegava do Colégio e a cozinha estava quente. Todo o tempo que podia ficar ali sentada passava-o a espreitar para baixo da camilha, onde a incandescência estava envolvida pela escuridão. Quando as brasas tinham sido acesas há pouco tempo, era impossível espreitar através da sarja para olhar para elas. O calor queimava a cara e obrigava a fechar os olhos, tínhamos de esperar. Procurei arranjar estratégias, sempre odiei esperar, nenhuma que funcionasse. Mal finalmente o calor começava a enfraquecer, levantava ligeiramente a saia da camilha e estudava o rubor do carvão, as cinzas em que se ia transformando.
Apesar de tudo, era rápido. Demasiado rápido. E havia sempre muitas cinzas, parecia-me sempre haver mais cinzas do que poderia ter havido carvão. As cinzas acumulavam-se no depósito e só por vezes eram despejadas numa operação difícil e melindrosa que reunia várias mãos. As vibrantes brasas acesas davam-me a sensação de fazer parte delas. Mas o misterioso carvão negro guardado no saco de papel ao lado da bilha da água ao fundo da varanda era frio, inerte, silencioso. Podia olhar para ele o tempo que quisesse e sempre que desejasse. Podia tocar-lhe ou não. Podia dar-lhe outro uso, como escrever. Intrigava-me a sua origem, a alquimia que o fabricava e a que o transformava, e nas minhas divagações comparava-o com o imperscrutável lugar negro de onde vinha a canção dos grilos. Quebrava pequenos pedaços às escondidas e levava-os no bolso da bata, os dedos negros, custava a sair, a minha mãe ralhava quando a bata ia a lavar. Mexia nos pedaços no fundo do bolso no caminho para o Colégio e pensava que alguma coisa no coração do mundo (e em mim) era assim, negra, brilhante, aparentemente indestrutível, se calhar apenas cinza. Pensava-o sem temor, pelo contrário. Não sei exatamente em quê quando digo nisto, mas havia nisto alento, um júbilo oculto, uma alegria. Ser carvão, ser brasa, ser cinza. Viver.
Uma vez a minha avó levantou-se da mesa do almoço para me fazer mais pastéis de pescada (levavam ovo e salsa), comi quatorze nesse dia. Disseram-me que, quando o meu pai era jovem, ela levantava-se para lhe fazer um bife se ele não gostasse do almoço. Quando penso na minha infância, a primeira imagem que tenho é a de me forçarem a comer. O meu quotidiano era preenchido pelo asco da comida e pela recusa em comer. A minha avó muito sofreu, todos os dias ia a casa dela para almoçar e ficava a brincar com os talheres, o copo e o guardanapo, a sarja, os autocolantes de fruta, plantas e pássaros nos azulejos, tudo o que me possibilitasse fugir ao prato que tinha à frente. Podia ficar horas nisso, e muitas vezes fiquei, proibida de me levantar antes de terminar a refeição. A comida fria acabava por ir para o lixo no meio dos gritos. Contaram-me que o meu pai era igual a mim e que tinha um truque: deitava a comida pela sanita e bebia vinagre, alguém lhe tinha contado que se o fizesse ficava magro. Achei isso genial e andei anos a tentar perceber como é que ele conseguia ir despejar a comida na sanita sem ninguém ver. Nas visitas à minha avó depois de entrar na faculdade, quando comecei a comer quatorze pastéis numa refeição, ela dizia que não percebia o que me tinha acontecido, que eu devia passar fome, e ria-se muito.
Lembro-me da minha avó dizer que «É preciso fazer um enxoval para as miúdas» e de acumular numa arca lençóis bordados, toalhas de mesa e toalhas de turco que trazia da feira. A minha mãe dizia que quando crescêssemos já não íamos gostar de nada daquilo e que havíamos de querer ter a nossa casa ao nosso gosto. Para a minha mãe, a independência de uma mulher era sagrada e nunca deixou que ninguém usurpasse a nossa. O enxoval na arca acabou por desaparecer.
Nos longos estios em que a cidade toda saía à noite, em mangas cavas e alças, para passear no jardim e na avenida que contorna o rio, dormíamos na varanda. Comíamos gelados, crianças que nunca se tinham visto umas às outras entravam e saíam dos arbustos a correr e a rir alto sem que ninguém as mandasse calar, o café que tinha a esplanada debaixo de uma videira carregada de uvas brancas estava cheio, se chegássemos tarde não arranjávamos lugar. As velhas sentavam-se em bancos à porta de casa e ficavam a conversar até tarde, os velhos jogavam cartas e à malha. Saíamos todos juntos para passear na avenida, eu e a minha irmã, os meus pais, os meus avós, os meus tios. A seguir regressávamos a casa da minha avó e ela estendia colchões de praia na varanda. Dormíamos aí, ao relento, embalados pelos grilos e pelo rumor do vento no trigo e na copa das árvores. Durante a noite, quando refrescava, os braços de alguém carregavam-me até à cama. O ar mole dessas noites que desapareceram era a imagem da felicidade. Na cidade onde nasci, no interior do país, agora as noites são desertas. Ninguém passeia, ninguém se encontra nos cafés, ninguém conversa até altas horas, as crianças ficam fechadas em casa a ver televisão ou a jogar.
A paisagem da Serra diante da casa da minha avó. Os dedos da minha avó, redondos e macios, a afastarem-me os cabelos ao sol para matar os piolhos. Uma casa muito limpa que nunca mudava, ainda assim um labirinto que eu percorria com a minha irmã. A Serra a arder todo o dia e toda a noite. Os grilos que não me deixavam dormir e me faziam sentir muito só. O que há de mais puro e subtil nos corpos não é atingível nem mesmo pela doença. É por isso que os corpos caem quando morrem, porque o devir é interrompido. O que a existência tem de perecível é isto, o seu devir, tudo o resto talvez perdure. Mas a morte é inconclusiva. O rigor que se espera da morte, inclusive nas expetativas de revelação que as pessoas alimentam sobre ela, não existe, porque o rigor é contrário àquilo que termina: não existe rigor fora do movimento, não existe rigor onde não existe mudança e tudo o que a compõe, como volume, sensibilidade, ritmo. Os fins são sempre remotos. Ao contrário da existência, que é aquilo que é, porquanto é, o fim é aquilo que nunca é, enquanto não é.