23 de junho de 2022

Cientificamente me pergunto
como foi criado o meu cérebro,
que faço eu com este engano.
Finjo ter alma e pensamentos
para melhor circular entre os outros,
por vezes parece-me mesmo amar
rostos e palavras de pessoas, raras;
sendo tocada gostaria de poder tocar,
mas descubro sempre que todas as minhas emoções
dependem de um temporal que se avizinha.
 
Patrizia Cavalli

20 de junho de 2022

O A. diz-me, mal termino de o ver, que se trata de um filme do pós-guerra e é como se a explicação justificasse o meu abalo. Explodiu uma bomba, estou no meio dos destroços silenciosos e, como a mulher a quem perguntam se ainda não engravidou, estou despedaçada. Sou intrépida como a amante que decide ser mãe solteira, não tenho medo de nada. Vejo o meu corpo asilado no trauma daquela que decide abortar. O que desejamos é incomunicável.
 
 
Yama no Oto [Sound of the Mountain], Mikio Naruse, 1954.

14 de junho de 2022

No jardim, no outono, uma mulher equipada com um colete refletor varre vagarosamente folhas do chão. As folhas caem por todo o jardim e a mulher varre, folha a folha. Folha a folha, tenta fazer um monte que o vento volta a dispersar. Ela pára um minuto, fuma um cigarro enquanto conversa com os colegas apoiando-se na vassoura de plástico. Depois, com gestos muito lentos e um sorriso circunspecto, volta a varrer e a refazer o monte, recolhe folha a folha, uma folha a seguir à outra, por vezes a mesma folha várias vezes. Aplicadamente, uma mulher recolhe folhas no meio do outono, enquanto as folhas continuam a cair.

10 de junho de 2022

Nova Iorque e regresso

estava desorientada
tive medo
andei longe
namorei perigos
voltei determinada
podia contar
torres altas
ravinas escuras
ganhei coragem
namorei perigos
andei longe
tive medo
desorientada como sempre

Elfriede Gerstl