6 de setembro de 2016

foi porque a distância entre mim e ela se adensou ao longo dos anos que percebi que aconteceria o mesmo com os outros. agora encontramo-nos raramente, embora de modo sempre muito afável, normalmente para tomar café, umas duas ou três vezes por ano. um dia fomos inseparáveis, mas já na altura as coisas que me irritavam nela eram as mesmas de agora. não me irritavam menos, pelo contrário, nessa altura falava sobre isso. hoje já não falo, passei de certa forma a aceitar que o lugar delas está acima de qualquer mudança. por isso mesmo, já não discutimos. recebemo-nos com um sorriso e um abraço, e falamos do que sabemos poder falar uma com a outra sem altercações. mantemos segredos, não explicamos tudo e quando ela fecha a cara para o empregado que serve o café, eu limito-me a agradecer e a sorrir no lugar dela. escondo por exemplo que considero que tenho um certo desprezo pelas pessoas que vêem o Big Brother. ela adere a tudo o que é popularucho, o mainstream é a sua praia, e a mim, o mainstream revolve-me as entranhas. acabei por me isolar demasiado um pouco também por isso, sem me reconhecer nas modas, afastei-me de todas as pessoas que aderem às modas, que é praticamente toda a gente que conheço. ela não mo diz, mas sei que não entende. continua a tentar mostrar-me um outro lado da vida, como se fosse essa a vida real, a vida bem vivida, equilibrada e feliz, dizem. no outro dia perguntou-me o que ando a ler. foi uma pequena falha a que não podia responder «deixa lá isso» e portanto respondi sinceramente, ainda que sem ânimo. a meio da minha exposição, mudou de assunto, distraidamente. «bem me parecia», pensei. eu cá não lhe pergunto o que anda a ler. agora às vezes não me atende o telefone ou não me responde a mensagens, coisa que dantes nunca aconteceria. estamos no rastro final do distanciamento, em que até as coisas seguras são colocadas em causa e desaparecem. como a maneira como ela me vê, que sempre pensei ser de uma grande lucidez. mudei tanto, como poderia ser? é isto agora, o mesmo com os outros. vamo-nos afastando sempre que nos calamos para não ter chatices, e o que houve de bom torna-se uma lembrança empoeirada, sem músculo.