14 de agosto de 2016

Gosto do meu trabalho nas urgências. Sangue, ossos, tendões parecem-me afirmações. Fico fascinada com o corpo humano, com a sua resistência. Graças a Deus — porque as radiografias e a petidina vão demorar horas. Talvez seja mórbida. Fico fascinada com dois dedos num saquinho, com a navalha de ponta e mola reluzente a sair das costas de um chulo. Gosto do facto de, nas urgências, tudo poder ser remediado, ou não.
Códigos Azuis. Bem, toda a gente adora os Códigos Azuis. É quando alguém morre — o coração pára de bater, eles param de respirar —, mas a equipa das urgências pode, e muitas vezes consegue, ressuscitá-los. Mesmo que o paciente tenha uns oitenta anos estafados, é impossível não se ficar empolgado com a emoção do processo, pelo menos durante um tempo. Salvam-se muitas vidas, vidas jovens e proveitosas. (...).
Os ciganos são mortes boas. Eu acho... as outras enfermeiras não, e os seguranças também não. Há sempre dezenas deles que exigem estar com o moribundo, que o beijam e o abraçam, a desligar e a estragar os televisores e os monitores e o resto dos aparelhos. A melhor coisa nas mortes ciganas é eles nunca mandarem calar os miúdos. Os adultos clamam e choram, mas todas as crianças continuam a correr e a brincar e a rir, sem que lhes seja dito que devem estar tristes ou mostrar-se respeitosas.

Lucia Berlin, Bloco de notas das urgências, 1977, in Manual para mulheres de limpeza.