31 de dezembro de 2015

sei aquilo que aprendi nos restaurantes, cujas cozinhas estão cheias de indianos, nepaleses, paquistaneses, que passam por nós, os portugueses, com os olhos postos no chão e só com tempo e dedicação passam a cumprimentar-nos, por vezes a conversar connosco e a alinhar em piadas que distraem da cápsula onde estão escondidos a lavar pratos e a cozinhar. e sei o que aprendi com a mulher africana a varrer o terraço da casa em frente, que olha para mim quando abro a janela e a quem digo bom dia, e que, para minha grande estupefação, baixa rapidamente os olhos e foge para o interior da casa para voltar um minuto depois e me devolver a saudação com um sorriso tímido. o seu silêncio é infinitamente acusador. as ruas da lapa, com embaixadas de um lado e do outro, estão aspiradas e o vento não faz mover as folhas das árvores. na rua, ninguém. mas no intendente as fronteiras desaparecem. procuro o gesto certo para perguntar por velas de aniversário num supermercado e um chinês passa por mim com um bebé que ri muito porque está a ser lançado no ar. tinha acabado de parar junto ao grupo de homens a conversar na esquina por onde passo muitas vezes, para lhes perguntar se queriam uma fotografia, mas não obtive resposta. já a subserviência e a altivez ostensiva irritam-me, e delas me afasto. algumas destas casas estão aqui desde antes do terramoto. agora os lisboetas vão para a praça, mas os imigrantes continuam a percorrer as mesmas ruas, estreitas, escuras e povoadas, e não se misturam: não se sentam nas esplanadas para tomar café, não almoçam no pequeno restaurante novo que diz que é vintage, não compram camisolas na zara nem escovas de dentes na farmácia ou arroz no pingo doce. não sei nada sobre o mundo de onde vêm, podiam dizer-me que vieram da lua que eu acreditava e ainda perguntava, curiosa, como era lá. eu também não sou daqui e, possivelmente ao contrário da maioria deles, não me importa ter vindo de algures ou ir para alhures, esqueci as origens e os destinos como se tivesse esquecido a alquimia que me faz agora percorrer estas ruas e cruzar-me com estas pessoas. e talvez tenha de facto esquecido. a memória não está feita para a abertura mas sim para a oclusão, faz desaparecer as coisas em explosões rápidas e indolores como nos filmes: se desviarmos os olhos por um instante, podemos até não dar pelo seu desaparecimento. se não esquecermos tudo não criamos nada. só que o que acabo que escrever é mentira, na verdade nem sequer nisso acredito. esqueci a própria capacidade de acreditar, que coisa estupenda! dos meus passos sobre a terra não haverá memória mas cada um deles foi uma coisa gerada no diálogo com o divino, esse fosso ilimitado onde muitos acabam por cair. entretanto encontrei as velas. um nepalês que acabou de abrir uma pequena loja, e me tinha dito que não tinha o que eu queria, foi ver o que havia nos caixotes na sala de trás, deixados pelo dono anterior. depois viu-me passar de novo à porta e veio a correr atrás de mim na rua, para me mostrar o que tinha encontrado. é um caixote velho e cheio de pó dentro do qual estão dezenas de pacotes de velas de aniversário dos anos 60. são velas a sério, uns coutos com um centímetro de diâmetro e os números pintados à mão, a vermelho, verde e dourado. estas velas são os primeiros anos da minha vida. fico radiante e ele, que não sabe porque estou tão feliz, sorri comigo e oferece-mas todas.