16 de dezembro de 2015

estou desde há uns meses a imergir na escrita de uma peça de teatro, coisa que me atormentava não saber o que é nem como se faz. toda a escrita me foi sempre natural menos esta, que faz uso de didascálias como os corpos fazem uso de silêncio. escrevi ensaios, poemas, artigos jornalísticos, sinopses, textos para publicidade vária, sobre várias disciplinas, da filosofia às artes plásticas, escrevi o que ia na cabeça de desconhecidos e escrevi para rir mas nunca nada para teatro. nunca me saiu uma linha. tentei poucas vezes, é verdade, mas sou daquelas pessoas que quando se dirige a uma página em branco já sabe o que quer. o resto do tempo aquilo anda ali às voltas, dias, meses, anos, dezenas de anos, na cabeça, nos olhos, na lábia, na surpreendente audição. e tenho medo de não chegar a tempo de concretizar tudo. é engraçado que quando penso nisto penso imediatamente, não sem um certo gozo, que o resto, aquilo que advém da sua exposição, me é absolutamente indiferente. estou protegida pela crença de que dizer aquilo que tenho para dizer, basta. já outros o disseram? é, sem dúvida, o mais provável e contudo, ao mesmo tempo, é precisamente esse o sinal mais claro do quanto quero dizê-lo: sem isso, confesso que não terei vivido.
não me animam questões de pertença ou de destinação. como poderia eu, que não gosto de todos os filmes do João César Monteiro nem acho o Ângelo de Sousa genial, ter sobrevivido, se a isso tivesse cedido? tenho limites amplos mas rigorosos e inflexíveis. gosto de estar com os outros mas é para mim que me dirijo. não nasci para ser budista, por isso nem sempre é límpido, nítido, visível e nunca se está inteiro em nada. mas é estar aqui e agora que eu quero e é isso plenamente, mesmo que seja o inferno. restam-me alguns dias com este texto e não sei ainda o que vai sair daqui. após estas semanas iniciais de trabalho tenho imensas ideias apenas a formar-se, o tempo falta-me sempre, outra lástima por não ter dado para budista. mas é inspirador descobrir finalmente o que isto é e como se faz. e de certo modo extraordinário, um extraordinário que poderia ser assustador se eu me assustasse com essas coisas, perceber como há tanto tempo não tinha um desafio.