11 de maio de 2015

por detrás da ramagem frondosa, soavam dispersos, como numa alucinação que nem a mais brilhante reflexão poderia esclarecer, o assobiar do vento, o melodioso canto de pássaros e, mais longe, o ruído do trânsito e latidos de cães. A. caminhava em ritmo de passeio e contudo, sem motivo aparente, tinha o corpo coberto por uma fina película de suor gelado que se adensava com enorme rapidez. tudo se passava muito rápido naquele dia, demasiado rápido, como se o dia não tivesse desejado existir e nele se desocultasse uma força irremediável, que voluntariamente o precipitava para o fim, como uma criança se retira, em cólera e desespero, para um canto escuro onde possa ficar a sós, um pedaço de mundo silente. sem conseguir escrutinar as razões de tal pressa, A. simplesmente via-se transportado por ela, metido numa enxurrada, em trambolhões, aos empurrões. mais ou menos a meio do dia, percebeu que a única coisa que não era afetada pela corrente, era o seu olhar. A. via. imagens sem concessões, de uma violência insólita, microscópicas, com uma simplicidade monástica, pontuavam o dia, reproduzindo no seu corpo uma transformação inexorável, através da secreta fratura de pequenos ossos e cartilagens. nada seria como antes, e a pouco e pouco sabia-o. mas, a partir dali, o que seria? à hora do almoço viu o sol brilhar e reparou que as suas mãos tremiam quase imperceptivelmente. um fio de suor descia pela têmpora esquerda, uma mexa de cabelo atrás da orelha estava ensopada. temendo denunciar-se, tentou medir cautelosamente os seus movimentos mas logo viu que isso se tinha tornado impossível: a velocidade, tornava colossais movimentos usualmente insignificantes, infantis, ocultando precisamente aqueles que lhe exigiam um esforço monstruoso. com grande choque, percebeu que, pela primeira vez desde que vinha ao parque, o passeio não lhe trazia hoje qualquer espécie de alívio, mas ainda assim quis insistir, e caminhou com fúria sobre a relva e sobre as folhas secas em direção ao centro, como um cão, procurando um lugar verde e fresco, pois ao contrário da última vez que ali tinha estado, na primavera, as copas das árvores tinham secado, deixando o céu a descoberto entre os ramos. porque estava sempre tão perdido?, perguntou-se com uma certa lassidão. era como se não pertencesse nem ao espaço nem ao próprio corpo que, a uma distância inominável do mundo, se ia desfazendo. havia nisso volúpia e satisfação, uma curiosidade impassível sobre o que apareceria no seu lugar. infeliz enfado deve ser a vida para quem tudo o que aparece já é alguma coisa, pensou.
aquecido pelo sol, adormeceu. acordou de noite, nu, imerso num imenso matagal que começava a cobrir-se de orvalho. sentindo-se abençoado pelo sentimento de solidão de quem acorda, em desproporção cúmplice com o cosmo, decidiu apreciar a contemplação das estrelas e não se levantou logo. a floresta parecia ser antiga, como que saída de uma fantasia judaica, com árvores frondosas, profundamente húmida e atravessada por uma miríade de sons infinita: vozes de aves e de outros animais, água a cair, folhas que empurradas pelo vento tocavam noutras folhas, passos, a respiração uníssona de todas as criaturas que a habitavam. fora isso, o silêncio era absoluto. o chão onde estava deitado continuava quente. névoas informes, que os olhos não podiam seguir, ascendiam na obscuridade, um odor de morte banal emergia e misturava-se com a frescura da noite. nele, uma alegria fervilhante fazia coincidir a omnisciente consensualidade da ignorância com o milagre intolerável. não se via viv'alma. teria de procurar uma saída através da vedação pois o parque estava fechado àquela hora. para sua surpresa, não foi difícil caminhar na escuridão. regressado ao incorrupto vagar que molda a matéria, o tempo já não era esse abominável mistério acossado e a noite, fresca, de um brilho viscoso, oferecia-lhe um refúgio agradável. não viu ninguém na rua. caminhou devagar sobre o alcatrão seco até chegar a casa, onde entrou através da janela da cozinha, a cheirar a pó e eucalipto e com erva no cabelo. sentado à beira da cama, as costas ligeiramente arqueadas, juntou as mãos, entrelaçando os dedos. tenuemente iluminado pelo candeeiro de rua, o quarto parecia-lhe agora distante como um planeta pertencente a uma outra galáxia. a monotonia regressava, como um tapete desbotado. levantou ligeiramente a cabeça inclinada sobre as mãos e, ao passar os olhos pelo sofá, que entrevia em parte através da porta para a sala, pareceu-lhe ver qualquer coisa, por isso fechou-os e tornou a olhar. uma mulher jovem, seus seios redondos e pesados, de cabelo avelã, ombros delicados, pés pequenos, dormia serenamente sobre uma manta castanha. a alvura da pele fê-lo pensar que podia estar a sonhar mas não conseguiu desviar os olhos. de formas arredondadas, era maciça, de uma inocência bravia, e ali resplandecia adormecida numa submissão total, quase indecente. uma ereção tardia como um regresso às origens, untada de sangue, um tanto grosseira apesar da cor rosácea, apareceu selvagemente, como uma lembrança despertada por ódios involuntários. havia uma solenidade comovente no momento. teve vontade de rir, mas não o fez para não a acordar. sem poder evitar o frémito interior, levantou-se e dirigiu-se a ela, cuidadosamente, para que ele próprio não acordasse. era uma coisa em chamas. os ombros abriam quando o peito se enchia de ar, cheirava a leite: era uma presa. tinha a boca ligeiramente aberta como que para deixar escapar um segredo. agora com a cabeça sobre ela, um perfume voluptuoso e grave atingiu-o como um vórtice. sentiu-se arder numa febre iniciática, embriagado. respirando fundo olhou em frente pela janela, passou as mãos sobre o rosto. que descoberta inesperada! queria tocar-lhe mas não sabia como fazê-lo, temia-a como se teme uma catástrofe, desejava-a como a uma ferida. tinha começado a amanhecer e ouviu-se o grasnar de corvos. à medida que a luz subia, A. avistou atónito a cidade em ruínas. empilhadas sob a alvorada, não deixavam reconhecer o mapa que as antecedia. olhou rapidamente na direção do parque, a floresta tinha desaparecido. protegidos por não se sabe que desígnio ou até quando, A. e a mulher, caída num sono profundo, permaneciam como que em suspenso, enquanto a luz devorava a noite subterrânea. ao meio-dia em ponto, uma dor lancinante atingiu-o e A. deixou de poder ver. o espasmo, ao mesmo tempo pungente e disseminado, atirou-o para o chão torturando-o implacavelmente. ao mesmo tempo, pensou na mulher e em como, sem saber porque nem por quanto tempo ali estaria, tinha deixado de a ver da mesma maneira que tinha passado a vê-la, abruptamente, e surpreendeu-se um pouco ao perceber que não tinha pena, não sentia por isso frustração nem desilusão nem desgosto. ao contrário, intensa e agonizante, a dor perturbava-o ao ponto de não ousar mover-se, esvaziando-o de toda a energia e resistência. a imagem de uma árvore morta, o tronco oco branco contra um céu azul ígneo, surgiu na sua mente. paradoxalmente, se por um lado a dor o imobilizava, uma audição feroz, sem ímpeto, tornava-o inteiramente desperto. nesse estado de atenção, onde o mundo vibrava cristalinamente pela primeira vez, em vez de preso, sentia-se livre como um gato selvagem e, para lá da cavidade em sossego, ouvia disperso, como uma alucinação que nem a mais brilhante reflexão poderia esclarecer, o ruído surdo da cidade. cheia de olhos que a atravessavam como cavalos e onde tudo era passageiro e feroz — tanto os assassínios e os roubos como a paz e a fartura —, A. conhecia-a bem e, apesar de a saber em ruínas, acreditava que ela não tinha mudado. assim esteve muito tempo, até que se habituou à dor e a esqueceu, como se pudesse viver para sempre com ela. a dado momento, pulsante e inequívoca, uma voz feminina soa na casa. parecia projetar-se das paredes, envolvendo-o como uma mãe ou a loucura e, com o corpo retorcido no chão, A. teve a tentação de tapar o membro desanimado com as mãos, o que fez mal o pensou. embora a ouvindo distintamente, pareceu-lhe também que as suas palavras eram como que traduzidas, e o facto de não ter acesso ao original angustiou-o profundamente. um nó horrível bloqueou-lhe a garganta. a mulher disse:

transformo a falta, a ausência, a saudade, em vício, para que me torne sua escrava. 
e não tua.

consternado e triste, viu a dor desaparecer lentamente, a visão regressar. levantou-se e procurou-a por toda a parte mas a casa estava vazia. ao ouvir ao longe o barulho de obras e um chilreio de crianças, aproximou-se da janela: a cidade tinha voltado a ser a mesma e como que reerguida dos escombros, brilhava na sua obscura assimetria e imprevisibilidade.