NOTAS
Neste livrinho de notas pode ler-se a seguinte entrada, s.d.: "Foda-se…!"
Quando uma criatura está em evidente regência de si não escreve diários, tratando-se estes da nula posição no que de diário têm os dias vividos plenamente. Decidi meter-me neles no princípio do ano, pensando, aqui vou eu poder ser ligeira, imaginar-me qualidades, seguir-me em forma de obra una e orgânica anotar o que de importante se passa nos meus dias de optimista invisual. Tonitroante na tamanha presença de mim vou tornando a cidade no meu coração porque parece que me despeço todos os dias. Se fosse médica diria: "reduza a pó tudo o que faça de si hospedaria de doença." Mas não sou. Escrevo umas merdas para aguentar muita luz, muita gente, muita morte. Dos ditos diários, há quem escreva coisas giras do género: "não perturbar o fumo do cigarro" — isto é para ser lido daqui a cinquenta anos e ainda ser cool, organizar excursões à Azinhaga da torre do Fato onde morou poeta que não perturbava. No meu diários há poucas linhas. Há umas palmas e vivas a encontros com amigos, um arroz de bacalhau que eu e a Rosalina fizemos uma vez numa noite em que um bom bocado de fuet caía ao chão como uma princesa rolando do pecado original, virada para baixo. Estava tudo delicioso, apareceu Deus em todas as suas faces. Há uma data misteriosa que diz só "amigos: Travessa do Corpo Santo 20:00" — sublinhado. Numa outra página uma nota inútil pretendendo-se singular: "Porque Camões é o hipómano da consciência moderna em crise", devo ter tentado trocar este binómio de Newton por uma Vénus de Milo de beber. À parte faltar a página do dia 14 de fevereiro, arranquei-a e guardei-a na gaveta das toalhas lavadas; o resto das páginas tem o efeito de florir novos adeptos pensamentos, ou seja, NADA. Ora, estando eu neste desemprego de vida entre o tudo e o nada desde que fiquei sem bolsa de doutoramento, estando eu a terminar um — para que o diabo me encontre mais rapidamente que aos outros e me convide para o bonde capeta onde se é realmente feliz com uma mol de água e uma mol de cianeto, é para isso que servem os doutoramentos —, e estando eu à procura de trabalho, um trabalhinho normal de pessoa normal que sabe ler e escrever e leu inclusivamente o livro das anedotas do Herman José em gaiata—, enfim, estando eu inevitavelmente acompanhada nesse tempo demais, com um currículo académico extensamente inútil, reparo como se pode fazer silêncio todos os dias cada vez mais em extensão e cada vez menos com peso. Depois de vez em quando passeamo-nos pelas estantes e encontramos um caderninho que entre as joínhas diz:
Planos para um futuro sem emprego:
a) Confirmar o erro psicológico ao Sr. Cabral de que já não preciso de inspiração; preciso é de balas.
b) Estrangeirar-me, mudar de rua, mudar de cidade, mudar de país, mudar de órgãos, mudar de religião, mudar de 'ser humilhante ter andado a estudar para ser uma desempregada no meu país' para: 'ser menos humilhante ter andado a estudar para ser desempregada mas não no meu país'.
Posto isto, amigos, é singular que não nos interesse a doença, senão aquela parte da teoria com que nos comprometemos com todas as gramáticas possíveis. Compreendido isto até à inconsciência, sentido isto ao fundo do corpo, estou com quem despreze os restos. Estou um bocadinho farta, sim. Já nos encontramos.
Raquel Nobre Guerra, publicado no facebook no dia 5 de maio às 19:14 com uma imagem.
Neste livrinho de notas pode ler-se a seguinte entrada, s.d.: "Foda-se…!"
Quando uma criatura está em evidente regência de si não escreve diários, tratando-se estes da nula posição no que de diário têm os dias vividos plenamente. Decidi meter-me neles no princípio do ano, pensando, aqui vou eu poder ser ligeira, imaginar-me qualidades, seguir-me em forma de obra una e orgânica anotar o que de importante se passa nos meus dias de optimista invisual. Tonitroante na tamanha presença de mim vou tornando a cidade no meu coração porque parece que me despeço todos os dias. Se fosse médica diria: "reduza a pó tudo o que faça de si hospedaria de doença." Mas não sou. Escrevo umas merdas para aguentar muita luz, muita gente, muita morte. Dos ditos diários, há quem escreva coisas giras do género: "não perturbar o fumo do cigarro" — isto é para ser lido daqui a cinquenta anos e ainda ser cool, organizar excursões à Azinhaga da torre do Fato onde morou poeta que não perturbava. No meu diários há poucas linhas. Há umas palmas e vivas a encontros com amigos, um arroz de bacalhau que eu e a Rosalina fizemos uma vez numa noite em que um bom bocado de fuet caía ao chão como uma princesa rolando do pecado original, virada para baixo. Estava tudo delicioso, apareceu Deus em todas as suas faces. Há uma data misteriosa que diz só "amigos: Travessa do Corpo Santo 20:00" — sublinhado. Numa outra página uma nota inútil pretendendo-se singular: "Porque Camões é o hipómano da consciência moderna em crise", devo ter tentado trocar este binómio de Newton por uma Vénus de Milo de beber. À parte faltar a página do dia 14 de fevereiro, arranquei-a e guardei-a na gaveta das toalhas lavadas; o resto das páginas tem o efeito de florir novos adeptos pensamentos, ou seja, NADA. Ora, estando eu neste desemprego de vida entre o tudo e o nada desde que fiquei sem bolsa de doutoramento, estando eu a terminar um — para que o diabo me encontre mais rapidamente que aos outros e me convide para o bonde capeta onde se é realmente feliz com uma mol de água e uma mol de cianeto, é para isso que servem os doutoramentos —, e estando eu à procura de trabalho, um trabalhinho normal de pessoa normal que sabe ler e escrever e leu inclusivamente o livro das anedotas do Herman José em gaiata—, enfim, estando eu inevitavelmente acompanhada nesse tempo demais, com um currículo académico extensamente inútil, reparo como se pode fazer silêncio todos os dias cada vez mais em extensão e cada vez menos com peso. Depois de vez em quando passeamo-nos pelas estantes e encontramos um caderninho que entre as joínhas diz:
Planos para um futuro sem emprego:
a) Confirmar o erro psicológico ao Sr. Cabral de que já não preciso de inspiração; preciso é de balas.
b) Estrangeirar-me, mudar de rua, mudar de cidade, mudar de país, mudar de órgãos, mudar de religião, mudar de 'ser humilhante ter andado a estudar para ser uma desempregada no meu país' para: 'ser menos humilhante ter andado a estudar para ser desempregada mas não no meu país'.
Posto isto, amigos, é singular que não nos interesse a doença, senão aquela parte da teoria com que nos comprometemos com todas as gramáticas possíveis. Compreendido isto até à inconsciência, sentido isto ao fundo do corpo, estou com quem despreze os restos. Estou um bocadinho farta, sim. Já nos encontramos.
Raquel Nobre Guerra, publicado no facebook no dia 5 de maio às 19:14 com uma imagem.